quarta-feira, 26 de dezembro de 2012

Esconjuro, pé de pato, mangalô três vezes.




O fim do ano se aproxima e os assuntos são sempre os mesmos: amor, fraternidade, peru, expectativas para o que vem pela frente, aquela velha história do ciclo que se fecha e renova, roupa branca, chuva na virada do ano. Esse ano teve a novidade do fim do mundo, que ocupou um tanto de páginas por aí, o que foi divertido – pelo menos eu me diverti. Minha contribuição para os assuntos recorrentes é falar sobre superstição.

Cresci numa família cristã (bastante) conservadora. Lembro-me da reprimenda que levei do meu pai quando contei que lia, regularmente, o horóscopo no final do jornal. Nunca acreditei em astrologia, mas achava engraçado ler os conselhos clichês, ou mesmo aqueles jogos de perguntas que indicavam que o leitor teria sido um guerreiro celta, ou uma princesa na idade média, encarnações antes. Mas isso era uma blasfêmia.

Já, no campo das superstições, meu pai era craque. Eu, aluno fiel. Para longe da hipocrisia, o quadro é a reprodução fiel do brasileiro sincretizado, que tem suas crenças e rejeita outras – embora superstição não seja exatamente uma crença. E, quando se vê encurralado, acaba acusando o golpe e admitindo a culpa. Tanto que, certa vez, ao evitar passar por baixo de uma escada na Avenida Rio Branco e quebrar o pé, o velho disse diante do meu sorriso, “Não falei que essa porra de superstição é blasfêmia?”

Não adiantou o exemplo doloroso, mantenho as minhas até hoje. Não ligo para a cor da roupa no dia da virada, nem pra comida da ceia, por que não ligo para o réveillon. Infelizmente minhas crendices se manifestam em coisas mais sérias.

Por exemplo, esse ano assisti a todos os jogos do Flamengo na companhia de uma imagem decapitada de São Judas Tadeu. Pois é, por conta de um acidente doméstico, São Judas perdeu a cabeça. Talvez isso explique as terríveis campanhas do time. Prometi a minha mulher que ano que vem, ou colo a cabeça do santo, ou compro outra imagem.

Por falar em minha mulher e futebol, ela mesma tem suas manias, como permanecer na mesma posição em que estava quando o Flamengo fez o gol. Isso pode ser complicado, acredite em mim.

No campo profissional, nunca conto a ninguém quando estou tendo sucesso, ou quando as coisas vão mal. Não tem nada a ver com manter segredo previdente, é crendice mesmo. Se me perguntam como vão as coisas no trabalho, respondo, há 12 anos, que estão bem, e nem sempre estiveram.

Não gosto de jogar tênis de meias curtas, mas meu jogo não melhora quando coloco meias compridas. Não pego elevadores que demoram muito, mas nunca soube de algum que tenha despencado depois que desisti de entrar. Ou seja, superstição é mesmo uma tolice.

No próximo dia 31 um exército vestido de branco invadirá Copacabana, pularão sete ondas, atirarão caroços de uvas nos telhados, comerão lentilha (bicho que cisca pra trás, jamais), estourarão champanha, ou não, e tudo será igual no dia seguinte, ou não.

A graça da superstição não está no resultado, está na situação em si. Na loucura lúdica, no medo infantil que leva um sujeito de sessenta anos a desviar de uma escada e quebrar o pé, e se encerra ali. É quase um TOC – às vezes se transforma mesmo em obsessão.

Ou será que você acredita mesmo que vai resolver seu problema amoroso se passar o ano de cueca vermelha. Bom, você pode até crer nisso, mas antes de vestir essa peça constrangedora, dê uma olhada no espelho, escove o dente e reveja a lista de amigos. Vai que você é feio, tem mau hálito e é chato. Nesse caso, meu caro, eu garanto, não tem cueca que salve.


trilha dos supersticiosos:






domingo, 16 de dezembro de 2012

É hora de dar tchau





Tem uma coisa de Teletubbies nessa zoeira de fim de mundo programado que me agrada. Seria bom se sempre soubéssemos a data exata do fim. Do fim de qualquer coisa.

Preocupa (será?) a possibilidade de na próxima sexta-feira o mundo seguir adiante, mas um bando de malucos sair matando gente por aí, sair engravidando, sair se endividando. Por mais que pensem ser exagero, pode crer, o sábado promete as manchetes mais toscas do milênio. E é disso que eu estava falando no parágrafo anterior, isso que me agrada.

Pensando como loucos, ou irresponsáveis, as pessoas acabam vivendo como deveriam viver. Bom, não sei se como deveriam viver, mas vivem melhor, sem grandes planos, que as coisas boas acontecem quase sempre naturalmente.

Não quero fazer apologia do descompromisso, viver sem grandes planos não significa ser irresponsável. É que eu vejo as pessoas gastando tanto tempo com os planos, pensando no que vai ser quando chegar ao objetivo, que não aproveitam todo o resto, que é na verdade a vida.

E aí, vem de novo aquela ideia do fim do mundo programado, todo mundo fazendo o que der na telha (soube de um caso verdadeiro de empréstimo vultoso fiado no apocalipse), aquilo que reprimia por conveniência ou insegurança, e que explode apoiado na única certeza da semana: o mundo vai acabar.

Ora bolas, a única certeza que temos desde que levamos a palmada na maternidade é a de que o mundo, um dia, vai acabar para nós. Vá lá, talvez seja a novidade do fim coletivo, não vou sozinho, vamos todos lotar o barco. Mas, no fim não faz diferença, um dia ele acaba mesmo, e nós gastamos o tempo sem pensar nisso, fazendo grandes planos, sonhando.

Pense, então, na possibilidade de saber a data exata do término de um namoro, da morte da sua mãe, do dia em que você vai ficar rico, ou pobre. Pense em como seria sua vida se você soubesse o dia exato em que coisas sobre as quais você não tem controle vão acabar, ou começar, ou acontecer. Nas coisas incríveis que faria, no tempo que passaria ao lado da pessoa, no valor que daria a cada momento.

Essa deveria ser sua vida normal.

Não é fácil, eu também não sou assim, e acho que não passarei a ser se o mundo continuar a girar no sábado. Na verdade, essa crônica foi só uma maneira de gastar o tempo fazendo o que mais gosto, vai que...



Minha música favorita de fim de mundo: it´s the end of the world as we know it - R.E.M.

quarta-feira, 7 de novembro de 2012

Como se fosse ontem

Kiko, eu, Victor, Fabinho, Rafinha e Gabi.


Depois de duas semanas, voltar como se nada tivesse acontecido (de certa forma, nada aconteceu, ao menos nesse blog, nas últimas duas semanas). E eu apareço assim, sem dar explicação, querendo sua atenção como se o nada que aconteceu fosse tudo que tivesse que acontecer.

A verdade (nessas horas ela é sempre a melhor explicação) é que, há uma semana, não sabia o que escrever. O tempo passou, quando notei era sábado. Então bateu preguiça e resolvi esperar até hoje, duas quartas-feiras depois da última crônica. Como ninguém ligou, mandou e-mail, chorou ou cometeu suicídio, acredito que o mundo passou incólume à minha desídia.

Novamente, diante da tela (preciso contar a verdade), não veio nada, a não ser pensar que voltei duas semanas depois, como se nada tivesse acontecido (de certa forma, nada aconteceu, ao menos nesse blog, nas últimas duas semanas).

Fiquei olhando a tela branca, que de tão parada dava a impressão de se movimentar, primeiro como se tivesse entrado em um túnel claríssimo, depois como se tivesse mergulhado solto no ar e a tela fosse um chão aceso que nunca chegava. Viajando até aparecer um rosto. Indecifrável, no início, mas que logo tomou uma forma conhecida. Tornou-se, por fim, o rosto de um amigo, um grande amigo, e eu compreendi o motivo.

Luiz é um desses caras com quem eu gostaria de encontrar todos os dias, gostaria que morasse no apartamento do lado, gostaria de levar nossos filhos juntos ao futebol. É um sujeito que me conhece tão bem e há tanto tempo (primeiros registros apontam o ano de 1983) que nossas vidas terminaram se tornando uma coisa meio misturada.

Nossas mulheres se adoram, sou padrinho do seu filho, e de casamento. Sua esposa é minha madrinha de casamento. Sua família me acolhe como um filho paralelo, a minha responde da mesma forma. Somos, enfim, o que as pessoas costumam rotular de melhores amigos.

Assim, nos vemos com a frequência de, uma, talvez duas vezes... ao ano.

Ele não mora do outro lado do mundo, nem eu sou um sujeito assim tão ocupado. É que acabamos caminhando, embora paralelamente, em vias separadas.

Por que lembrei disso? Porque sempre que nos encontramos é como se tivéssemos nos encontrado ontem, talvez uma semana antes, mesmo tendo se passado um ano. Não há chateação. Ninguém fica magoado se o outro se esquece de ligar no aniversário (isso nunca acontece, é verdade), ao contrário, estarmos juntos é sempre motivo de festa.

Quando nos despedimos, não existe preocupação, ou tristeza, mesmo sabendo que em um ano, ou seis meses, muita coisa pode acontecer. Tenho sempre a impressão de que o Luiz mora a quatro casas da minha, como na infância, e eu posso tocar a campainha à hora que quiser, pelo motivo que for, nem que seja para jogar conversa fora, mas principalmente para construir uma história real, que isso são os amigos: histórias reais.

Eu sinto saudade e sei que ele também sente, nem por isso cobramos do outro mais do que damos ou recebemos, nem por isso estamos sempre disponíveis, afagando o ego ou realizando as vontades do outro, isso é história real e a nossa é incrível.

E quando nos encontrarmos novamente, sabe-se lá em que circunstância, nos olharemos do mesmo jeito que fazíamos quando íamos jogar bola no campinho (os dois, goleiros), como se nada tivesse acontecido, apesar de tudo o que aconteceu.

quinta-feira, 25 de outubro de 2012

É sério isso?

A Metamorfose: Gregor Samsa se transforma em um inseto horripilante


Cena 01:
Senhora muito idosa, de cabeça branca, parada na calçada, com olhar desamparado voltado para porta aberta de um ônibus.
Lá dentro, sentado em seu trono, o motorista dispara:
“Sem identidade e sem cartão de gratuidade, não posso liberar.”
O escritor, que passava à toa pela local, para ao lado da velhinha e pergunta:
“É sério isso?”
O escritor sai apressado antes de ouvir o Motorista-Rei mandá-lo guardar a petulância numa parte secreta de sua anatomia.


Para quem leu ‘O Processo’ antes de se deparar com situações como essa, todo absurdo faz mais sentido. E cada vez mais, somos atores dessa farsa, onde a subversão da ordem comum, da gentileza e do ‘normal’ torna-se regra.

Poderia roteirizar inúmeras cenas semelhantes, tomando emprestado como cenário o Rio de Janeiro. Por exemplo, o povo cansado voltando do trabalho, ansiando por um banho relaxante e um prato de comida, sendo obrigado a ouvir o funk que o ‘amigão’ coloca no último furo dentro do metrô, ou o sujeito que acende despreocupadamente seu cigarrinho na mesa do restaurante fechado.

Invariavelmente, pessoas que praticam despropósitos não compreendem a reação de terceiros, por que são parte do próprio quadro. Sua lógica é outra, em sentido inverso, assim como para o policial entrar no quarto de Joseph K. pela manhã, sem ser anunciado, é algo que deveria ser esperado.

Faz tempo que prefiro interpretar esse movimento comportamental não como consequência de algo maior, como falta de investimento em educação, mas como um movimento evolutivo – nem tudo evolui para o bem. Já escrevi antes, as coisas são como são e fazer esforço para mudar sua natureza é tentar nadar em terra firme.

Esses quadros kafkianos que surgem – com maior frequência – em nosso cotidiano são provas dessa teoria. Não estamos mais mal educados, somos mal educados. Não estamos menos gentis, somos nada gentis, o que José Datrino notou faz tempo, ele próprio nadador profissional de terra firme.

Daí surgem expressões como a do escritor, que estupefato diante da cena 01, nada lógica, ou gentil, consegue apenas perguntar ‘é sério isso?’, mas não tem força para modificá-la. Resta a ele escrever sobre o assunto e vamos seguindo.

E não pense você que está livre de trocar de papel. Certamente esse escritor já cometeu equívocos tão cabeludos quanto o do motorista, é tudo questão de oportunidade e perspectiva.

Talvez o tempo ensine melhor uns, que outros, a lidar com situações como essa, pois no fundo a vida é um grande absurdo e tem gente que sabe interpretar melhor o papel. O que me faz lembrar da segunda cena, ocorrida uns dez anos antes, com outros atores, outro cenário, outro desfecho.


Cena 02:
Senhora muito idosa, de cabeça branca, entra na fila preferencial do supermercado empurrando com dificuldade o carrinho repleto de compras.
Funcionária que opera o caixa cerra os olhos, crispa os lábios e dispara:
“Por que você entrou nessa fila? Por acaso é idosa?”
A velhinha ajeita o corpo, estufa a barriga e responde fleumática:
“Não filhinha, é que eu estou grávida.”
Funcionária abaixa a cabeça. Clientes em volta caem na gargalhada. Minha avó nunca leu Kafka.


* todas as cenas descritas são verdadeiras, e você ainda topará com uma delas.

quarta-feira, 17 de outubro de 2012

Quero ficar no teu corpo

Um belo exemplo do que se tornou a tatuagem



Demorou mais de dois milênios, mas conseguimos acabar com o sentido de uma tradição que, para algumas civilizações, teve grande relevância cultural, religiosa e social: A tatuagem.

Há uma discussão arqueológica em torno de sua origem – não sei afirmar o quanto o assunto é importante a ponto de gerar uma discussão científica, mas muitos achados indicam que pode ter surgido no Egito antigo (sempre eles), na Polinésia, na Indonésia, nas Filipinas ou na Nova Zelândia.

Pouco importa. Certo é que para esses povos, a tatuagem era mais que mero enfeite, representava uma marca de identidade.

Geralmente ligada à religião, na Idade Média a Igreja Católica (sempre a gente) proibiu a tatuagem, que considerava um vilipendio ao corpo, marca do capeta. Mas, os marinheiros ingleses (as vezes eles) espalharam a moda pelo mundo lá pelo século XIX, e de tal modo, que levou a Coroa Britânica a adotá-la como meio de identificação.

Mais tarde, numa época sombria, outro povo usou a tatuagem como meio de identificação de prisioneiros, mas eles não merecem sequer registro.

Com essa bela história, a tatuagem avançou pelo século XX e chegou até os tempos atuais quase incólume.

Quando era garoto, lembro-me de ouvir meu pai dizer que tatuagem era coisa de maconheiro, ou de presidiário, o que não deixa de ser verdade. Essa fama, porém, ao invés de prejudicar sua imagem, emprestou ao desenho no corpo uma aura de rebeldia desejada. Uma tatuagem era sinal de que o sujeito era cult, revoltado, fora do sistema.

Não à toa, há registros importantes de tatuagens em livros, filmes, músicas, desenhos animados, como forma de determinar a personalidade forte (Popeye), indelével (Tatuagem, Chico Buarque), ou marginal (Cabo do medo) das personagens. 

Essa impressão encheu minha cuca até que, numa bela tarde de verão, eu e minha esposa esticamos a toalha na areia da praia e o avistamos: A passos lentos, malemolente, carioquíssimo, o rapaz saiu do mar e passou por nós, embevecidos com o emblema da cerveja Brahma tatuado em seu peito.

A arte, cujo sentido ainda não compreendi, talvez esteja no antagonismo de juntar uma das maiores marcas de contracultura da história, com o que há de mais sistemático, organizado, pastoreado, programado, que é a logomarca de uma empresa multinacional (Gozado pensar que a outra experiência que vivi nesse sentido – o do antagonismo, foi com um professor de pós-graduação, conhecido e respeitado Procurador de Justiça do Rio de Janeiro, cuja imagem seria mais facilmente associada à de um Hell’s Angel com o corpo quase fechado por tatuagens, e que, segundo a lenda, viajava todo ano à Polinésia para acrescentar um desenho ao corpo).

A partir dali, começaram a pipocar tatuagens tribais sem sentido, desenhos animados,  nomes de namoradas, as indefectíveis fotos de bebês (!), estrelinhas como as da Monique Evans, copiadas pelo Léo Moura, e tudo foi piorando, e piorando, e piorando, a ponto de hoje em dia ser cult ter o corpo limpo.

Contribuiu para isso, tenho certeza, a propaganda de médicos que dizem ter descoberto um meio de acabar com tatuagens indesejadas. Assim, a madrinha de bateria está livre para tatuar no bumbum o nome que desejar, e a cada ano pode apagar e tatuar outro, por toda a eternidade (tivessem descoberto alguns anos antes, enterrariam a citada composição do Chico).

Eu admito que tatuagem seja algo pessoal e seu significado interesse apenas ao dono do corpo (e nem vou falar de um tempo em que o ‘íntimo’ perdeu o sentido, isso é outro papo), mas o fato é que chegamos ao tempo em que uma tradição usada (pelo bem e pelo mal) por milênios como meio de identificar singularidades de determinados povos se transformou em algo tão comum, que não serve mais para identificar ninguém. Melhor, identifica a todos como iguais.

Infeliz amarelo, num mundo em que todos gostam do azul.

quinta-feira, 11 de outubro de 2012

O 'dia do barbante'

O presente mais emblemático da história da humanidade


No longínquo ano de 1987 – talvez 1988, na semana anterior ao segundo domingo do mês de maio, eu e meu irmão saímos no tapa. Nada de incomum não tivesse sido uma pancadaria na véspera do ‘dia das mães’. Naqueles dias eu fiquei arrasado, e durante muito tempo me senti mal por deixar a velha triste perto de data tão importante.

Muitos anos depois, descobri que o ‘dia da mães’ nada mais é que uma data comercial trazida ao Brasil pelo publicitário João Dória para vender geladeiras. Depois das matriarcas, o vendedor de ilusões resolveu homenagear os namorados e por aí fomos.

No rastro da fantástica estratégia de venda, duas gigantes do comércio infantil resolveram criar o ‘dia das crianças’ para sensibilizar os papais a coçar o bolso. Trouxa que somos, aderimos à campanha de marketing que data de 1960 e, até hoje, nos endividamos a cada mês de outubro em troca do sorriso dos ‘pequenos’, ainda que seja temporário, vazio e interesseiro.

Eu tenho filho, sei como é, mas esse ano o ‘dia das crianças’ foi aposentado lá em casa, afinal de contas o guri se tornou um adulto, e quem se apresenta ao Exército e quer se matricular em autoescola perde automaticamente direito ao mimo infantil, o que para mim é um alívio.

Não se trata de avareza, que não combina com minha tendência perdulária, mas sempre achei essas datas um tanto contraditórias. O sujeito passa o ano inteiro chorando no balcão do bar porque o dinheiro não é suficiente para cobrir as despesas do lar, mas abre crediário nas Casas Bahia para comprar um helicóptero de controle remoto com lança chamas embutido para o pentelho, numa data que, sinceramente, não representa nada.

Melhor, representa um aumento nas vendas do varejo, no lucro do comércio e das indústrias, assim como todas as outras ‘datas festivas’.

Pouco se fala de consumismo, num mundo onde ‘ter’ se tornou o que era ‘ser’, pois quando fala no assunto você é taxado de chato (nesse momento é possível que 80% dos leitores já tenham desistido da crônica). Por outro lado, muito se fala de pobreza, de crise econômica, de déficit público e privado, sem levar em conta que todos são consequência, também, do gasto desnecessário.

Parece que todo mundo tem medo de falar no assunto, afinal de contas quem quer desapontar o filho, ou a mãe, ou a namorada?

A única crítica interessante que li ultimamente sobre o assunto está no conto ‘Valdir Peres, Juanito e Poloskei’ de Antônio Prata, publicado na edição brasileira da Revista Granta, lançada em julho desse ano. Leve, trata com humor do nascimento da classe média consumista brasileira, fotocópia dos ianques.

Outra coisa que me incomoda é a onda crescente de comemorações diárias, que acho que aumentou com o crescimento das redes sociais. Antigamente os dias do ano eram dias de Santo: meu irmão nasceu no dia de Santo Antônio, eu e meu pai no dia de Santana e minha mãe no Natal (ganhava apenas um presente).

Hoje, comemoramos o dia da saudade, do cego, do enfermo, do órfão...  todo dia tem alguém para lembrar a gente que é dia de comemorar alguma coisa e a onda é tão grande que as grandes coisas perdem significado no meio de coisas abstratas ou insignificantes.

Pensando nisso enquanto escrevia essa crônica (dia 09 de dezembro), procurei feito um louco (dia 27 de agosto) na internet (17 de maio) pelo ‘dia do barbante’ (?), e não achei. Talvez por isso o produto venda tão pouco.

quarta-feira, 3 de outubro de 2012

Comendo palavras

Rabo Assado: concorrente do Angu do Gomes no Comida di Buteco 2012


Todos temos preconceitos. Uns mais graves, outros menos importantes. Uns latentes e inconfessáveis, outros explícitos e tolos.

Tinha, por exemplo, um amigo que se recusava a namorar meninas com nomes feios. Dizia que atrapalhava os momentos mais íntimos. O cara foi coerente e casou com uma Maria.

O meu é parecido, não como pratos com nomes estranhos. Pode parecer besteira, mas a discriminação me privou de muito prazer, por muito tempo. E vem de longe.

Carioca de linhagem capixaba, era torturado todo ano quando me obrigavam a comer moqueca durante as viagens de férias  à terra de meus antepassados. O prato é uma espécie de ícone na família, todos o adoram, todos o comem, todos o sabem preparar. E para piorar, meu velho encarna o papel de último guardião da moqueca perfeita.

Tenho certeza de que minha aversão começou pelo nome. Antes mesmo de descobrir sua etimologia sombria vinda dos caldeirões de canibais brasileiros, a própria palavra e sua pronúncia misturadas ao cheiro forte da iguaria me assombraram na infância.

As coisas não ficavam melhores quando a viagem tinha como destino Vassouras, terra da Doxinha, a avó do outro lado. Lá a tensão era ainda maior. Nos almoços festivos serviam sempre dobradinha, alcunha não mais atrativa que o famoso nome buchada de boi. Como poderia ter interesse em comer algo chamado buchada (ou dobradinha)?

Se, por um lado, com o tempo tornei-me mais um adorador de moqueca, por outro, jamais dei o braço a torcer quanto ao cozido, tenha ele o nome que queiram dar.

Depois, pratos como sarapatel, pato no tucupi, quebra-queixo, sururu, puxa puxa, grude, maniçoba, sovaco de cobra, beira seca e sorda, também entraram na lista de rejeitados voluntários, porque acredito que ninguém pode ser feliz mandando pra dentro coisas com esses nomes.

Em outros momentos, porém, é o constrangimento que me impede de saborear iguarias com apelidos toscos. Para evitar piadas estúpidas, jamais peço pacu assado e rabada em restaurantes. Aliás, experimentei rabada pela primeira vez esse ano, por conta de um festival, mas isso é outra história.

E quando penso que talvez tenha vencido o preconceito, afinal de contas me entreguei aos prazeres da moqueca e da rabada, tomo uma rasteira. Entro no restaurante, abro o cardápio e começo a me interessar pelo prato: nhoque... (hum, Adoro massa) de batata baroa... (excelente sabor) com ragu de... (não, ragu não!).

quinta-feira, 27 de setembro de 2012

Menina ou menino?

Foto: Portal G17

Uma dúvida que sempre intrigou os homens no curso da existência, a possibilidade da mulher estar grávida, pode causar muito mais constrangimento do que se imagina.

É claro que namorados adolescentes tendem a dramatizar mais o fato que homens casados que, no final das contas, mesmo passando por situação financeira instável, ou por crise no relacionamento, sempre tendem a se alegrar com a notícia.

Há também a família e os amigos bisbilhoteiros, sempre de olho na circunferência da mulher e na abstinência repentina de álcool.

Não são esses com certa dose de interesse legítimo, porém, que me interessam. São os desconhecidos, ou quase desconhecidos que se preocupam com a gestação alheia e que provocam situações inusitadas, talvez por não poderem questionar diretamente a “mãe”, talvez simplesmente por se meterem onde não são chamados.

Lembro que lá pelo meio do meu percurso universitário uma professora provocou histeria na turma. Era uma moça jovem, meio riponga e tranquila, que chegou à sala de aula fumando (sim, naquela época todos os professores universitários fumavam dentro da sala de aula). Foi um alvoroço, virou debate de corredor, acharam um absurdo às raias de um novo milênio uma mulher grávida fumar, mas ninguém teve coragem de questioná-la.

Na aula seguinte, a mesma cena: a professora simpática e sorridente, exibindo um barrigão, com o cigarro nas mãos.

A turma não aguentou. A representante se convenceu (ou foi convencida pela turma) de que aquilo não estava certo e de que a professora deveria ser interpelada. Feito o questionamento, a professora cheia de vergonha esclareceu que não estava grávida, apenas gostava de tomar uma cervejinha nos finais de semana.
A história deveria parar por aí, já que não sei a influência que o constrangimento teve na vida da professora, ela despareceu depois daquele semestre. No entanto, na última semana, voltou como um raio sobre a minha cabeça.

Dizem que qualquer animal tem a capacidade natural de aprender com os erros, por isso macaco velho não mete a mão em cumbuca, ditado que, pelo jeito, não se aplica a mim.

Sentou-se ao meu lado no metrô um garoto acompanhado da mãe, que ficou em pé. Viajando no som do MP3, somente depois da segunda estação, percebi que a mãe estava grávida. Gentil como manda a cartilha, levantei e ofereci o lugar, que ela prontamente recusou. Insisti, “mas você está grávida, faço questão.” Ao que ela respondeu, “não, eu estou gorda.” Constrangido, levantei e saltei antes do meu destino, como a professora que abandonou a faculdade.

Pelo sim, pelo não, a partir de agora vou esperar que contem a notícia antes de dar os parabéns.

quarta-feira, 19 de setembro de 2012

No que você está pensando?



Nunca fui aficionado por super-heróis, mas tenho lá os meus prediletos, dentre os quais nunca figurou o Professor Xavier. Acho perigoso esse negócio do sujeito poder ler a mente das pessoas e manipular ações e pensamentos. Mas vá lá, não passa de ficção.

Tudo corria bem nos mundos dos quadrinhos até deparar com a seguinte capa de revista: Ciência a um passo de ler o pensamento.

Não quero elaborar um tratado ético, nem explorar as questões morais e antropológicas que porventura possam surgir caso algo tão poderoso caia nas mãos de um vilão sanguinário. A notícia provocou apenas medo.

Ninguém está interessado nas suas conclusões, na construção de um pensamento livre e racional, e sim no óvulo.

Aquilo que expomos não é necessariamente o que pensamos em um primeiro momento, mas a junção das sensações e emoções, filtrada pelas experiências de vida e o conhecimento adquirido que está pronto para ser dito, escrito, expressado. É o feto pronto para nascer.

Do jeito que as coisas andam, estão prestes a enterrar a máxima ‘pense antes de falar’. Imagine a confusão. A partir do momento em que o cientista tenha acesso ao primeiro pensamento as conclusões serão dele, e não do ‘pensador’.

A minha cabeça, por exemplo, funciona de forma intercalada. Penso em algo, que é interrompido por outra coisa, que depois retorna depurado, que se apaga, perde o lugar e, às vezes, não sai nunca da cachola, fica comigo. Difícil de alguém, diferente de mim, interpretar.

Não pense que é exagero (sem querer manipular você), a coisa é tão mais ampla que ao entrar na maior rede social em atividade na internet a primeira pergunta feita é “no que você está pensando?” Céus, deixem em paz meus pensamentos! Preocupem-se com minhas conclusões.

Alguns vão dizer que é bom, é o começo do fim da mentira (adeus Papai Noel) e do cinismo (adeus humor inglês), mas quem disse que o mundo prescinde deles? Seria o caos. O que torna o homem especial são precisamente suas particularidades, dentre as quais a mentira, a omissão, a covardia e tudo aquilo que taxam de defeito, inclusive.

Só consigo enxergar um lado bom. Antevejo um excelente negócio para quando os cientistas decretarem o fim do pensamento livre. Abrir uma fábrica de capacetes iguais aos do Magneto, prometendo salvaguardar a mente de invasões indesejadas (acho que criar um software de proteção com senha vai ficar para um futuro longínquo), vai dar um bom dinheiro, pode apostar.

Talvez não seja socialmente adequado andar por aí mostrando para todo mundo que você tem algo a guardar na cabeça, mas, por via das dúvidas, se alguém tiver o telefone do Magnus agradeço.

quarta-feira, 12 de setembro de 2012

A bunda guitarrista

créditos na ilustração


O cronista depende dos sentidos mais que da caneta ou da qualidade do texto.

Com os olhos enxerga detalhes desimportantes à multidão que ganham destaque através de uma perspectiva nova. Com os ouvidos pesca uma conversa medíocre que vira tese urbana unânime. Seu paladar ou olfato transforma-se em gatilho que dispara sensações únicas, em momentos únicos, que do papel insípido e inodoro são capazes de produzir gosto e cheiro jamais experimentados.

E se chega a um estágio tal, que é bom andar com um caderninho no bolso para anotar tudo o que se vê, se ouve, se toca. Escrever uma crônica é traduzir as entrelinhas do mundo, cada vez mais cheio, indiferente, barulhoso e fedorento.

Em todo lugar há sempre algo para ser observado de forma peculiar, mas existem alguns lugares que reservam grandes crônicas, sempre.

João Ubaldo fala muito em sala de espera de consultório médico, e fala tanto que no início você acha que já leu o que ele escreveu (ou será que eu li coincidentemente as únicas três crônicas ambientadas ali que ele escreveu?), para logo depois perceber que nunca leu nada igual.

Assim como salas de espera, aeroportos, restaurantes, salas de concerto , praia, metrô são ótimos para se pescar algo diferente. Talvez por misturar no mesmo lugar coisas de grande interesse e insignificâncias valiosas.

O cronista deve estar por aí, é seu dever de ofício frequentar, ler, ouvir, comer. Dever com o qual, em parte, estou em falta.
Por força da minha crescente intolerância com o ritmo e os barulhos do Rio de Janeiro, de uns tempos pra cá, estou sempre com fones no ouvido e som no volume máximo. Daí que, considerando tudo aquilo que escrevi até aqui, tenho desperdiçado grandes oportunidades de escrever boas crônicas.

Não ouço mais buzinas estridentes, nem discussões de mães e filhas. Não ouço mais a conversa ao telefone do camarada no metrô, nem as besteiras que dizem ao meu lado nos elevadores. Ouço apenas rock n’ roll e tenho a impressão de que esse tema é roto, no que se refere às crônicas.

Entre os sons que há muito me desagradam, está o toque do meu celular. Com o perdão da digressão, trata-se de um toque exclusivo produzido com a ajuda do meu ex-estagiário, que muito habilmente editou o riff inicial de “Dance with myself”. Portanto, toda vez que alguém me liga, a guitarrada do Billy Idol explode em meus ouvidos.

Não é que dia desses estava voltando pra casa ao som do Black Sabbath, pauleira comendo solta no meu ouvido e celular no bolso de trás, até que senti uma mãozinha tocar minha perna. Parei, olhei para o lado e um garotinho, cinco, seis anos, de mãos dadas com a mãe tentava fazer contato comigo. Tirei o fone e olhei gentilmente para o guri que apontou pra trás e mandou na lata, “moço, seu bumbum tá tocando violão.”

Pensei, mas não disse, “tomara que ele se torne um cronista, porque acabei de perder uma boa história.”

terça-feira, 11 de setembro de 2012

terça-feira, 4 de setembro de 2012

O retrato do artista

foto dos caras que estão arrebentando diariamente 
no Largo da Carioca e no Buraco do Lume. 
Arte de graça no Centro do Rio.


Gosto quando encontro por aí artistas em começo de carreira. Lembram aqueles cuja arte tem por fim a própria arte.

Não se trata de uma filosofia utópica que pragueje contra artistas que cobram por seu trabalho. Não acharia justo o Cony deixar de receber pelo que escreve, talvez merecesse ainda mais do que já ganhou.

Eu mesmo, colocando meus pés na literatura, ficarei feliz se meus romances ‘venderem bem’, permitindo alcançar o estado glorioso de artista brasileiro que vive do que escreve.

Trata-se, apenas, de gosto.

Lembro que algumas das telas que hoje enchem os bolsos dos leiloeiros da Sotheby’s e da Christie’s valiam miséria no auge das carreiras dos seus autores. Van Gogh, pelo que me consta, conseguiu vender apenas uma de suas telas. Nem por isso abandou sua arte, ou desistiu dela.

O que me entristece é ver bons artistas corrompidos, como por exemplo, bandas que compõem um primeiro disco fantástico e se submetem (artisticamente) à ordem do mercado, deixando de produzir ao longo de suas carreiras boas obras. Deve haver um universo paralelo onde vagam natimortas centenas de obras primas que nunca foram, ou serão compostas.

Mas não quero perder tempo com os maus.

Li, há algumas semanas, no Globo, a respeito do trabalho do escritor argentino César Aira e fiquei fascinado, embora jamais tenha lido uma linha do que escreveu. Não é sua obra (ainda), o que me encanta é o tratamento que o artista dá a ela.

Sua preferência pela prosa curta, sua preferência por pequenas editoras, sua preferência pelo trabalho quase artesanal é incrível. A partir daí, o autor trata como arte todo o livro, desde a capa até as palavras.

Não pense você que não há por trás disso até mesmo uma estratégia de negócio (o autor nega veementemente). Pode haver, não sei afirmar. Mas ela não está exposta, não vem à frente como um letreiro que tapa a vidraça da loja. E não é nem um pouco importante.

Importante para Aira é o conjunto que é arte. Ele vive dela, mas também para ela.

Minha opção por uma editora pequena (nova) tem muitas explicações. Desde uma rejeição inicial de editoras comerciais grandes à opção por fazer um trabalho pessoal, artesanal. Será meu primeiro livro publicado e poder participar verdadeiramente de todo o processo, desde a escolha de um artista plástico de minha preferência para fazer a capa até sabe-se lá o que, seduz e interessa.

Não que eu seja um exemplo, ao contrário. Exemplo é Aira.

Para mim, funciona mais ou menos como para uns (outros) argentinos que no último mês se instalaram no Largo da Carioca e adjacências fazendo um som original, cheio de energia e que tem juntado grande quantidade de gente no meio do expediente: Se, ou quando a coisa crescer, que mantenha a mesma aura, o mesmo objetivo. Que continue arte pela arte.

Link da reportagem no Prosa e Verso:

terça-feira, 28 de agosto de 2012

O vazio está cheio




Não é bloqueio, é falta do que falar.

No mundo atual pode parecer esquisito, mas ainda existe. Cercado de gente por todos os lados, notícias que chegam até nós por todos os meios, verborrágicos ansiosos por uma conversa no metrô, ainda há espaço para o vazio?

Podem me acusar de superficial. Todo dia alguém morre numa guerra, o que por si só renderia mil crônicas. Todo dia surge um novo sucesso da internet. Todo dia fotografam a Piovani no Leblon, todo dia ela bate num paparazzo pentelho. Afora o que está aí, já existia quinhentos anos antes de eu nascer e merece elogios, reflexões e análises em qualquer tempo e espaço.

Por exemplo, por conta de um trabalho, estou lendo Don Quixote. Nunca tinha lido. Uma amiga escritora disse que foi o primeiro romance moderno. É o livro perfeito e acho que ninguém deveria ter escrito outro romance depois, tem tudo lá. Mas escrevemos e ainda bem que vieram Ulysses, 1984, O Cortiço... Don Quixote dá uma excelente crônica, mas não é dele que quero falar.

Megadeth vai comemorar em São Paulo 20 anos do lançamento de Countdown to extinction, enquanto na última sexta-feira a Plebe Rude fez um belo show no Circo Voador. Música, seja de qualquer qualidade, sempre dá boa crônica. E daí?

Tem o mensalão e a disputa de egos de Ministros. Somos diariamente acordados com notícias tristes a respeito da política e, agora também, do Direito. Houve um tempo em minha vida em que o Direito representou esperança (de ganhar um bom salário), mas isso acabou antes mesmo de eu me formar. Dá pra falar sobre Brasília? Só se for sobre Lúcio Costa e Niemeyer (que adora desenhar curvas, mas projetou uma cidade sem esquinas), mas não quero.

Um dos meus prazeres recentes era sair de casa pela manhã para comprar pão, ou passear com o cachorro, e parar em frente a uma banca para ler as manchetes dos jornais que eu não compraria. Paixão que aumentou depois que entrou em circulação o jornal Meia Hora, com suas manchetes muitas vezes irônicas, grosseiras na maioria delas.

Fizeram tanto sucesso por aí, que não há um dia em que eu não ligue o computador e não depare com sua capa. Seja em rede social, seja por e-mail, sempre tem alguém que acorda antes de mim e envia o link do diário, acabando com meu barato de ler por mim mesmo o absurdo do dia pendurando na calçada. Consequência: não ligo mais o computador antes de ir à rua.

Tudo ganhou tanta importância, sentimos tanta necessidade de falar de qualquer coisa, antecipar qualquer coisa, dar cartaz a qualquer coisa, que tenho a impressão de que até aquele silêncio no meio de uma conversa não existe mais.



Não culpo a contemporaneidade, não culpo a imprensa ou as mídias, não culpo a superficialidade ou a falta de educação. Não culpo ninguém. As coisas são assim, mudam. O silêncio e a falta perderam valor por esses dias. Tudo tem de estar preenchido, apesar de haver muito no vazio.

terça-feira, 21 de agosto de 2012

Síndrome de caramujo


Usamos o carro somente quando viajamos, um hábito que faz bem ao bolso e mantém um bom nível de serenidade, já que o trânsito do Rio de Janeiro anda infernal. Usamos o carro com frequência, já que, pelo menos uma vez por mês, pegamos a estrada em busca de um lugar onde encontrar uma rede na varanda. Foi assim que, pela sétima vez, fomos ao Festival da Cachaça de Paraty.

Na primeira vez, no já longínquo ano de 2006, ficamos maravilhados. Parecia uma quermesse superlativa, com boas atrações musicais, regionalismo, originalidade, boa pinga, fora o prazer de passar uns dias numa das cidades mais bonitas do país.

Daquele tempo pra cá, muita coisa mudou. Desde o público (antes, casais mais velhos em busca de bucolismo. Hoje, a garotada da ‘pegação’) até a própria estrutura do evento.

Das lembranças que guardo da festa, o chão coberto por palha de cana e os eventos de música regional que aconteciam no palco secundário, são as melhores. Não existem mais.

Pensei muito no que teria levado os organizadores a mudar o perfil do Festival e concluí que a culpa é, também, dos forasteiros.

O barato de esticar as canelas numa rede não está entre as pretensões de quem não consegue se livrar da síndrome de caramujo. Doença que acomete essas pessoas que levam o notebook para a mesa de café da manhã de um hotel charmoso, porque precisam baixar as fotos que tiraram na noite anterior e carregar o Facebook.

Num exercício de ficção, tentei imaginar que legenda a mocinha colocou nas fotos. Não consegui, não é minha onda. Não conseguiria, naquele lugar, naquele momento, na companhia da minha mulher, escrever nada que alguém – além de nós dois – merecesse ler. Devo ser mal ficcionista, ou rabugento.

Mais tarde, escorregando entre as pedras do centro histórico, fui obrigado a desviar de dezenas de carros com os vidros pretos de onde saíam terríveis sinfonias no estilo funk/sertanejo/axé, até descobrir que os grupos de maracatu, choro e samba-de-roda locais, que por anos animaram os visitantes durante as tardes, foram deixados de lado.

Eu, que viajei para encontrar um lugar que fosse diferente do que é o meu cotidiano (forçado), não consegui me sentir a mais de dois quilômetros da Praça Varnhagen.

Ninguém estava (está) interessado em viver uma experiência diferente, talvez por isso achem sacal caminhar horas por uma trilha de Trindade e, ao final, sentar na beira da praia para ouvir o ‘reggae’ local.

Tudo tem motivação. Não sei a deles. No meu caso, viagens servem para conhecer e absorver novas culturas, aproveitar circunstâncias às quais só terei acesso naquele momento e/ou lugar. Não vejo graça em transformar cada lugar ao qual vou naquilo que sou. Não viajo com a casa nas costas. Do contrário, é melhor ficar na varanda da Tijuca, é menos caro e só divido a mesa do café com minha esposa (filho, cachorro, gatos...).

quarta-feira, 15 de agosto de 2012

O nariz

uma de minhas raras fotos de perfil



Os motivos pelos quais eu poderia odiar meu nariz não são poucos. Ele é grande e feio. Curvado, mais ou menos na metade do percurso entre o vinco das sobrancelhas e as narinas. Projetado por um osso (ou será cartilagem?) inconveniente que resolveu aparecer por ali quando eu tinha uns sete, oito anos.

Excluída a infelicidade estética, eu sofro de rinite alérgica. Portanto, em tempos muito secos, ou úmidos demais, além do tamanho que já tem, ele fica vermelho, e eu parecendo a rena trouxa do Papai Noel.

Outra das impertinências diz respeito ao início da minha juventude. Fui adolescente de temperamento difícil. Qualquer besta cinco centímetros mais alta e vinte quilos mais pesada conseguia facilmente me irritar, a ponto de arranjar uma briga e me fazer voltar para casa cuspindo marimbondos com o nariz partido.

Sem falar em outras inconveniências que vão desde apelidos à paranoia incompreendida de me recusar peremptoriamente a tirar fotografias de perfil.

E mesmo com tudo isso, ou apesar da real disposição genética de ser um velhinho com pelos saltando freneticamente das narinas, eu gosto do meu nariz. E vou te dizer por quê: De todos os sentidos, da visão à audição, passando pelo tato e pelo paladar, nenhum se compara ao olfato. É primordial, é ancestral. Se a capacidade racional nos diferencia, o olfato nos iguala a todos os outros seres. Em tempos pós-modernos de alta tecnologia, é pelo olfato que mais nos aproximamos do nosso cachorro e do que somos em essência.

Fica na lembrança, como nenhuma fotografia ou música, o cheiro de bloqueador solar que a mãe chafurda no nosso nariz antes de chegar à praia. Ou, melhor que qualquer toque em tecido fino ou pele suave é o cheiro do perfume que infestou o primeiro beijo. No que o cinema 3D supera o cheiro do quarto do sítio do avô perdido em alguma estrada da serra?

Nenhum prato do Cordon Bleu eleva mais o espírito que o cheiro do corredor de acesso às arquibancadas do Maracanã num dia de final de campeonato estadual. E é uma tarde de domingo ensolarado, é verão, e você chega abraçado à perna do seu pai, e aspira o suor e a cerveja que seu pai leva na mão, e o cheiro do gramado (verde, verde) recém-molhado, que sobe pela geral, cobre as cadeiras e arrebata as arquibancadas. O cheiro do cigarro do velho irritadiço que xinga o Nunes e depois levanta pra comemorar o gol do “maior centroavante que o Flamengo já teve”. O cheiro da pipoca doce misturado ao mofo da bandeira que ficou guardada tempo demais dentro do armário, a volta para casa no ônibus, o escapamento do ônibus e mil pessoas se espremendo no ônibus, cada uma delas com um cheiro diferente.

O olfato é a fotografia que não depende da fixação de imagens em uma película por obra da exposição de luminosidade intensa, mas apenas de sensíveis receptores, pequeninas células, impulsos elétricos involuntários, que enviam ao cérebro mais que uma imagem, um gosto, um toque, um som. Enviam histórias das quais somente lembramos quando essa fantástica máquina do tempo funciona e damos o primeiro passo na direção daquilo que fica realmente guardado, esquecido, abandonado, e ressurge violento como o cheiro de gasolina, e enjoa, emociona, irrita, agrada, leva a um canto que fica escuro na maior parte do tempo.

Daí que, se um dia você me ouvir ranzinza reclamar do meu nariz, tenha a certeza de que estou sendo mais tato que olfato. Ou as lembranças são ruins – que elas também existem.



* Crônica desenvolvida na excelente oficina de Arnaldo Bloch - Escrita como libertação (recomendo).

sexta-feira, 10 de agosto de 2012

A mão da vergonha: e se o seu filho fosse (for) gay?



Em casa temos o hábito de guardar o jornal por muito tempo. Passadas semanas, suas páginas viram banheiro de gato, embrulho de copos quebrados. Às vezes são relidas.

Foi assim, meio por acaso, que li matéria de Evandro Éboli publicada em O Globo de 21 de julho desse ano, que tratava de uma estatística triste. A manchete era clara: “Em 2011, 19 ataques homofóbicos por dia”.

Nunca fui bom em análise estatística e dificilmente consigo extrair de números algo mais que números. Dessa vez foi diferente. Além daquele explícito no caput da reportagem, haviam outros, tais como o número de agressores (2.275) é maior que o de agredidos (1.713), mais de 40% das agressões são injuriosas e por aí vai.

Como deixando o pior para o final, adiante encontrei o atilho que me trouxe a essas palavras: Em sua maioria (38,2%) os ataques são praticados por familiares, seguidos de ataques de vizinhos (35,8%).

Minha constatação óbvia era de que se tratava de coisa de pai e irmão machões, isso antes que chegasse a mais triste das estatísticas. No ambiente familiar as agressões são praticadas em sua maioria pelas mães.

Como dito, nunca fui muito bom em descobrir por trás de estatísticas algo além de algarismos, mas esses números não falam, eles xingam.

Por que exatamente as mães agridem mais filhos homossexuais que os pais, não sei dizer, mas tenho uma ideia. É o braço forte da vergonha, a decepção, medo de que o filho gay seja o reflexo de sua incompetência como gerente da família. A homossexualidade da prole um defeito, ela a culpada.

Na minha cabeça, as coisas pioram quando do outro lado vemos pais de agressores (sejam de gays, prostitutas, empregadas domésticas, índios, mendigos bêbados) defendo sua prole até a última gota de suor e o último centavo empenhado aos advogados. Invariavelmente dizem que seu filho não é bandido, que é tudo um mal entendido, que o rapazinho estuda e a prisão pode acabar com seu futuro.

Nesse quadro, alguma coisa está fora da ordem.

E pode ser diferente? Pode piorar. Acredito que continuando as coisas como estão, se as próprias mães agridem os filhos gays, se as próprias mães defendem os filhos agressores, em dez anos os 19 ataques homofóbicos diários no Brasil triplicarão, decuplicarão.

Enquanto escolas não discutirem abertamente a questão, enquanto as religiões não aceitarem as diferenças (céus, Deus sabe disso?!?), enquanto a sociedade não tratar com normalidade o que é normal, mães continuarão sentindo vergonha e agredindo aqueles a quem deveriam proteger, enquanto outras continuarão a dar desculpas esfarrapadas para proteger aqueles a quem deveriam punir, aqueles de quem deveriam sentir vergonha.

Na próxima e todas as vezes que lhe perguntarem: e seu filho fosse (for) gay? Responda (e deseje): que ele seja feliz, que seja honesto e que seja saudável, como qualquer outro filho. Até que a vergonha passe para o lado das pessoas que fazem esse tipo de pergunta. Para quem quer saber os números da vergonha ai vai o link: http://clippingmp.planejamento.gov.br/cadastros/noticias/2012/7/21/em-2011-19-ataques-homofobicos-por-dia/