segunda-feira, 19 de setembro de 2022

DE VOLTA AO JOGO

 

frame de O Carteiro e o Poeta



DE VOLTA AO JOGO


Voltar a escrever é como voltar a pedalar depois dos quarenta e cinco anos. Você sente necessidade, física até. Sabe que precisa, que vai te fazer bem, conhece todos os benefícios. Sabe quais passos devem ser dados para daqui a seis, sete meses, tudo voltar a ser como nunca deveria ter deixado de ser há seis, sete anos. Você calça o tênis. Você abre o notebook. Você compra a camisa colada no corpo com tecido tecnológico que absorve o suor. Você abre a garrafa de Johnnie. Você compra a bike mais leve do mercado. Você acende o baseado. Você compra os óculos espelhados. Você abre todos os sites com dicionários de sinônimos disponíveis. Você entra num grupo que faz pedais aos finais de semana do Leme ao Pontal. Você procura no Spotify uma playlist de artistas indie. Você passa mal tentando subir o Alto da Boa Vista. Você fica irritado com o vizinho de cima fazendo obra no sábado e o culpa pelo bloqueio criativo. Você é levado para o pronto-socorro e submetido a um eletrocardiograma que não indica nada de errado, mas você sabe que tem algo de errado, aquilo não é mais pra você. Você fica puto da vida e escreve um conto péssimo no qual seu vizinho é esfaqueado setenta e duas vezes e cai do nono andar dentro do caminhão de lixo, fica com mais raiva ainda e deleta o arquivo. Você jura que nunca mais vai pedalar. Você jura que nunca mais vai escrever. Você encontra no pôquer a diversão perfeita, afinal no pôquer tudo é permitido, até olhar a mão do parceiro de jogo que der aquele vacilo, você pode beber um Johnnie enquanto joga pôquer, até fumar um maldito charuto você pode no pôquer, cacete! Você resolve que vai é compor samba, escrever não dá dinheiro mesmo, pagode deixa qualquer um rico e você escreve pra caralho, vai ser capaz de escrever pagodes sensíveis e não vai ter que correr atrás de editoras, basta pagar duas, três horas num desses estúdios que existem por aí e subir a música no Spotify. Pôquer dá menos trabalho e você também pratica sentado. Compor é mais divertido e você também faz em casa. Pôquer é esporte? Compositor é profissão? Você se dá conta de que pode praticar ciclismo e pôquer simultaneamente. Não exatamente ao mesmo tempo, por óbvio, mas praticar pôquer não afasta o ciclismo. Você lembra que existem grandes sambistas que são escritores, grandes escritores compositores: céus, Chico Buarque tem uns vinte e cinco Jabutis! Você recorda que pagou trinta e cinco mil reais na bike mais leve já fabricada no planeta Terra. Você sabe que seu note vai acordar no dia seguinte com aquele olhar sacana te chamando pra dedilhá-lo. Você precisa melhorar o fôlego, um corpo forte pode ajudar a melhorar o desempenho sexual, fotos com o tórax sarado no Instagram vão render uns matches, além dos benefícios para a saúde, no fim, você vai comer mais gente e isso é muito bom. Você vai voltar a publicar e isso desperta o interesse de um certo tipo de mulher que é exatamente o tipo de mulher que desperta o seu interesse, pode descolar um trocado, não muito, mas isso não importa, você pode ter o livro resenhado na Folha, no Globo, isso massageia o seu ego e isso desperta o interesse de um certo tipo de mulher que é exatamente o tipo de mulher que desperta o seu interesse, no fim, você vai comer mais gente e isso é muito bom. Você decide que vai acordar amanhã e voltar a pedalar, com calma, com paciência, você vai conseguir. Você vai voltar a escrever e como é escritor não vai esperar amanhecer porque a garrafa de Johnnie já está aberta mesmo e está tocando New York no Spotify, a voz do Lou Reed batendo forte no seu ouvido, hold on, filho da puta, hold on, é madrugada e o canalha do 903 não está martelando a esta hora, você está de volta ao jogo, sua cabeça começa a fervilhar, você digitando palavra atrás de palavra, na sintaxe perfeita, ideias jorrando por todos os cantos do seu cérebro genial, você está de volta, porra! Acende um baseado, traga fundo e se pergunta: será que dá pra ser ciclista e escritor ao mesmo tempo?