quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

Páginas de rock

Bob Dylan e Allen Ginsberg visitando o túmulo de Jack Kerouac
Li a obra clássica de Mark Twain As aventuras de Tom Sawyer por influência da banda que mais rolou na bandeja da vitrola lá de casa quando eu e meu irmão éramos adolescentes: Rush. Quando levei uma fita cassete para a casa de um amigo para apresentá-lo aos canadenses ele me respondeu com o livro. Cada um de nós se defendia com as armas que tinha. Apesar do nome, a música não é uma representação exata do livro, mas é diretamente inspirada nele.
A banda que mais ocupa meus ouvidos ainda é Rush, mas o tempo hoje é dividido com os livros. É interessante notar, tanto tempo depois, que não se trata de coincidência. Os caras têm uma relação estreita com a literatura, assim como todas as grandes bandas de rock.
Há muitas músicas inspiradas em livros – acredito sinceramente que a Bíblia deve ser o mais usado deles - e muitos textos a esse respeito por aí. O que chama atenção é que, afora o gospel, o rock é o gênero musical no qual encontramos mais exemplos de compositores leitores.
No álbum Ride the Lightning do Metallica encontramos duas referências explícitas a obras literárias: For Whom the Bell tools e The Call of Ktulu. A primeira, ao romance homônimo de Hemingway; a segunda, ao conto de Lovecraft chamado The Call of Cthulhu. O que não era suficiente para convencer meu pai de que os americanos não fazem apenas barulho. Dificilmente ele relacionaria Metallica à literatura (a gente fica mais velho e acha que o novo é pior, pouco digno de respeito. A inquietude dá lugar à nostalgia. Pura ignorância).
Ele era do tempo em que Little Richard espantava os mais velhos e era obrigado a manter sempre virada a capa do disco Here´s Little Richard, porque meu avô não suportava o sorriso escancarado do Ricardinho. “Já era suficientemente tolerante permitindo que comprássemos um disco daqueles” contava e sorria. Como não queria ver meu pai encarnando meu avô, nunca apresentei Metallica a ele (que também não ligava muito pra literatura).
Por outro lado, algumas bandas de rock que o velho admirava também beberam em fontes perdidas em páginas de livros. A emocionante (não encontrei um adjetivo mais adequado) The Fool on the Hill, que não é rock mas é Beatles, foi inspirada no romance Tom Jones de Henry Fielding. O álbum Animals do Pink Floyd, banda pela qual meu pai tinha devoção, foi todo inspirado na Revolução dos Bichos de Orwell.
Essa relação da música com a literatura deveria ser óbvia, como é óbvia a relação entre as diversas formas de expressão artística. Mas quando se fala em rock há um estranho bloqueio que impede parte das pessoas de enxergar arte, ou a possibilidade de haver ali algo mais que confusão sonora.
Por outro lado, estudos (ai, ai, ai) de uma universidade inglesa concluíram que os jovens mais inteligentes preferem ouvir rock por ser um gênero musical considerado capaz de estimular a criatividade e aliviar pressão. E olha que não há qualquer menção à relação com as Letras.
Há, também, quem veja maior capacidade profissional nos amantes do gênero. Recentemente o Estadão publicou matéria em que afirma que gostar de rock pode pesar positivamente na busca de um emprego. E mais uma vez ninguém menciona a relação estreita das duas formas de arte, mas já é um avanço.
Certo é que ao tratar de literatura somos vistos de forma diversa da qual nos olha o mundo quando vestimos camisas pretas com reproduções de capas de álbuns - mesmo sabendo que ao menos três músicas do Led Zeppelin foram inspiradas na obra de Tolkien, Iron Maiden sofeu influência (óbvia) de William Golding em Lord of the Flies, o ícone Black Sabbath inspirou-se também em Tolkien em ao menos duas músicas, Sepultura tem um álbum inspirado na Divina Comédia, sem falar em Tony Bellotto com suas composições e romances policiais, Bob Dylan, Rolling Stones, Velvet Underground, The Police, David Bowie, que criaram peças musicais importantes inspiradas em obras literárias - como se houvesse alguma diferença entre o que foi produzido pelos célebres autores e o que foi composto por lendas. Repito, pura ignorância.
Saindo do rock, no entanto, muitas vezes a influência literária produziu horrores musicais. Não consigo imaginar Clarice Lispector ouvindo Pato Fu, ou Jack Kerouac admitindo qualquer relação entre sua obra mais festejada e o bate-estaca da Katy Perry. Já Tolkien e Page compartilhando alguma poção mágica não é tão difícil de imaginar.
Músicas inspiradas em livros:



sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

A última lição

Eu e Badu em Iriri

A notícia de que meu pai estava com câncer veio acompanhada de um bom prognóstico: o tratamento seria leve e a possibilidade de cura chegava a 95%. Um ano e meio depois, recebi um telefonema do meu irmão no meio da madrugada dizendo que meu pai não resistira a mais uma sessão de quimioterapia e morrera em casa.

Estive com o velho um dia antes e sabia que sua maior tristeza não vinha das dores que sentia, ou do sofrimento que lhe provocavam atividades que antes fazia com desenvoltura. Sua maior dor não vinha da humilhação que sofria cada vez que precisava de ajuda para ir ao banheiro. Ele sabia que estava perdendo o que mais amava: a vida. Sua incapacidade de manter-se vivo era o que lhe entristecia.

O apego do meu pai à vida era um tanto exagerado – nem sei se era apego à vida, ou pavor da morte, apesar de sua profunda religiosidade cristã – e talvez não seja uma boa referência, dado o antagonismo acentuado em relação à ‘morte piedosa’. Mas com ele vivi minha única experiência de sofrimento grave.

Todas as vezes em que saiu das infindáveis sessões de quimioterapia, ele me telefonou. Todas as vezes em que esteve internado, estive com ele. Muitas das vezes em que sentiu dor, estive ao seu lado. Em nenhum momento ele sugeriu trocar o sofrimento pelo alívio do descanso eterno.

Juntos de novo em Campos do Jordão

Três meses depois de perder meu pai, recebo a notícia de que a Bélgica aprovou a eutanásia em crianças.
Não acho que qualquer pessoa que não tenha passado pelo sofrimento extremo tenha a capacidade de opinar adequadamente sobre a morte piedosa. Meu pai fez uma opção, minha opinião vem de uma experiência deslocada (vivi com uma pessoa que suportou um sofrimento acima de suas próprias forças e nunca externou a vontade de interromper a vida).

E é precisamente por achar que somente quem vive o mal pode compreender sua extensão e determinar quando e como ele deve ser interrompido, que a noticia me espantou.

Existe uma diferença significativa entre o “me deixem morrer” e o “vamos desligar os aparelhos”, uma diferença de origem da vontade. Enquanto na morte assistida o paciente clama pelo direito de decidir quando e como morrer (direito natural e inafastável), há permissões para eutanásia em que a decisão pode estar nas mãos de outras pessoas.

Muitos foram os casos que chegaram aos tribunais mundo a fora em que familiares pleiteavam o direito de desligar aparelhos que mantinham vivas pessoas incapazes de se comunicar. Esses casos forjaram leis, que evoluíram até os dias atuais. Casos em que a vontade do próprio paciente (elemento essencial para morte assistida), não foi manifestada. E nunca será.

Não poderemos mensurar, jamais, em quantos desses casos estávamos diante de pessoas que, como meu pai, prefeririam encarar a dor até o final, ou pessoas que optariam pelo desígnio próprio de encerrar o quanto antes aquilo que se sabia não ter mais remédio.

Penúltimo aniversário que comemoramos juntos:nascemos os dois em 26 de julho.

O caso da lei que autoriza a eutanásia em crianças belgas me leva até aí. Crianças não podem escolher a escola que frequentarão, ao menos não costuma ser assim. Não escolhem o que almoçarão. E essas são escolhas simples. Crianças não escolhem o remédio, ou o tratamento ao qual serão submetidas (no caso de haver opção). Não escolhem o médico que lhes assistirá, porque consideramos que não possuem experiência e discernimento suficiente para optar pelo que lhes é mais adequado.

Da mesma forma, crianças não saberão escolher entre enfrentar o sofrimento ou suplantá-lo, porque ainda não são capazes de determinar o quanto podem suportar (a lei belga determina que para a eutanásia ser autorizada a criança deverá ser capaz de discernir!!!).

A primeira vista, a nova lei belga vem em socorro de pais e parentes, mais do que daqueles que se ‘beneficiarão’ dela. A impressão que provoca em mim é a do alivio do fardo do terceiro.

Volto a admitir que aqueles que sofrem inconscientemente e não podem se comunicar – pacientes em coma há anos – não sofrem menos, mas a impossibilidade de externarem a vontade deveria ser ao menos considerada mais importante do que a vontade de quem acompanha, de fora, sua dor muda.

Admito, mais. Que o sofrimento emocional – esse que ataca parentes de pacientes - pode ser igual, ou mais avassalador que o físico.

O suicídio é um exemplo de que há ocasiões em que a dor emocional pode nos fazer incapazes de resistir ao impulso de nos livrar do mal. Mas o suicídio continua sendo um tabu que nos faz abrir sepulturas em locais isolados de cemitérios, apesar de ser uma das mais claras demonstrações de vontade que o homem pode oferecer.

E a mesma sociedade que repudia o suicida, cria leis que autorizam a morte de pessoas que são incapazes de escolher o que lhes é mais caro. A mim não parece coerente.

Aquém de dogmas religiosos, da influência das culturas, ou de uma ampla discussão sobre a dignidade da pessoa, escolho enxergar o assunto a partir da última lição de meu pai: escolher a vida.



As músicas do velho: