Um belo exemplo do que se tornou a tatuagem
Demorou mais de dois milênios,
mas conseguimos acabar com o sentido de uma tradição que, para algumas
civilizações, teve grande relevância cultural, religiosa e social: A tatuagem.
Há uma discussão arqueológica em
torno de sua origem – não sei afirmar o quanto o assunto é importante a ponto
de gerar uma discussão científica, mas muitos achados indicam que pode ter
surgido no Egito antigo (sempre eles), na Polinésia, na Indonésia, nas
Filipinas ou na Nova Zelândia.
Pouco importa. Certo é que para
esses povos, a tatuagem era mais que mero enfeite, representava uma marca de
identidade.
Geralmente ligada à religião, na
Idade Média a Igreja Católica (sempre a gente) proibiu a tatuagem, que
considerava um vilipendio ao corpo, marca do capeta. Mas, os marinheiros
ingleses (as vezes eles) espalharam a moda pelo mundo lá pelo século XIX, e de
tal modo, que levou a Coroa Britânica a adotá-la como meio de identificação.
Mais tarde, numa época sombria,
outro povo usou a tatuagem como meio de identificação de prisioneiros, mas eles
não merecem sequer registro.
Com essa bela história, a
tatuagem avançou pelo século XX e chegou até os tempos atuais quase incólume.
Quando era garoto, lembro-me de
ouvir meu pai dizer que tatuagem era coisa de maconheiro, ou de presidiário, o
que não deixa de ser verdade. Essa fama, porém, ao invés de prejudicar sua
imagem, emprestou ao desenho no corpo uma aura de rebeldia desejada. Uma
tatuagem era sinal de que o sujeito era cult,
revoltado, fora do sistema.
Não à toa, há registros importantes de tatuagens em livros, filmes, músicas, desenhos animados, como forma de determinar a personalidade forte (Popeye), indelével (Tatuagem, Chico Buarque), ou marginal (Cabo do medo) das personagens.
Essa impressão encheu minha cuca
até que, numa bela tarde de verão, eu e minha esposa esticamos a toalha na
areia da praia e o avistamos: A passos lentos, malemolente, carioquíssimo, o
rapaz saiu do mar e passou por nós, embevecidos com o emblema da cerveja
Brahma tatuado em seu peito.
A arte, cujo sentido ainda não
compreendi, talvez esteja no antagonismo de juntar uma das maiores marcas de
contracultura da história, com o que há de mais sistemático, organizado,
pastoreado, programado, que é a logomarca de uma empresa multinacional (Gozado
pensar que a outra experiência que vivi nesse sentido – o do antagonismo, foi com
um professor de pós-graduação, conhecido e respeitado Procurador de Justiça do Rio de
Janeiro, cuja imagem seria mais facilmente associada à de um Hell’s Angel com o corpo quase fechado por
tatuagens, e que, segundo a lenda, viajava todo ano à Polinésia para
acrescentar um desenho ao corpo).
A partir dali, começaram a
pipocar tatuagens tribais sem sentido, desenhos animados, nomes de namoradas, as indefectíveis fotos de bebês (!), estrelinhas como as da
Monique Evans, copiadas pelo Léo Moura, e tudo foi piorando, e piorando, e
piorando, a ponto de hoje em dia ser cult ter o corpo limpo.
Contribuiu para isso, tenho
certeza, a propaganda de médicos que dizem ter descoberto um meio de acabar com
tatuagens indesejadas. Assim, a madrinha de bateria está livre para tatuar no
bumbum o nome que desejar, e a cada ano pode apagar e tatuar outro, por toda a
eternidade (tivessem descoberto alguns anos antes, enterrariam a citada composição do Chico).
Eu admito que tatuagem seja
algo pessoal e seu significado interesse apenas ao dono do corpo (e nem vou
falar de um tempo em que o ‘íntimo’ perdeu o sentido, isso é outro papo), mas
o fato é que chegamos ao tempo em que uma tradição usada (pelo bem e pelo mal)
por milênios como meio de identificar singularidades de determinados povos se
transformou em algo tão comum, que não serve mais para identificar ninguém. Melhor,
identifica a todos como iguais.
Infeliz amarelo, num mundo em que
todos gostam do azul.
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