quarta-feira, 17 de outubro de 2012

Quero ficar no teu corpo

Um belo exemplo do que se tornou a tatuagem



Demorou mais de dois milênios, mas conseguimos acabar com o sentido de uma tradição que, para algumas civilizações, teve grande relevância cultural, religiosa e social: A tatuagem.

Há uma discussão arqueológica em torno de sua origem – não sei afirmar o quanto o assunto é importante a ponto de gerar uma discussão científica, mas muitos achados indicam que pode ter surgido no Egito antigo (sempre eles), na Polinésia, na Indonésia, nas Filipinas ou na Nova Zelândia.

Pouco importa. Certo é que para esses povos, a tatuagem era mais que mero enfeite, representava uma marca de identidade.

Geralmente ligada à religião, na Idade Média a Igreja Católica (sempre a gente) proibiu a tatuagem, que considerava um vilipendio ao corpo, marca do capeta. Mas, os marinheiros ingleses (as vezes eles) espalharam a moda pelo mundo lá pelo século XIX, e de tal modo, que levou a Coroa Britânica a adotá-la como meio de identificação.

Mais tarde, numa época sombria, outro povo usou a tatuagem como meio de identificação de prisioneiros, mas eles não merecem sequer registro.

Com essa bela história, a tatuagem avançou pelo século XX e chegou até os tempos atuais quase incólume.

Quando era garoto, lembro-me de ouvir meu pai dizer que tatuagem era coisa de maconheiro, ou de presidiário, o que não deixa de ser verdade. Essa fama, porém, ao invés de prejudicar sua imagem, emprestou ao desenho no corpo uma aura de rebeldia desejada. Uma tatuagem era sinal de que o sujeito era cult, revoltado, fora do sistema.

Não à toa, há registros importantes de tatuagens em livros, filmes, músicas, desenhos animados, como forma de determinar a personalidade forte (Popeye), indelével (Tatuagem, Chico Buarque), ou marginal (Cabo do medo) das personagens. 

Essa impressão encheu minha cuca até que, numa bela tarde de verão, eu e minha esposa esticamos a toalha na areia da praia e o avistamos: A passos lentos, malemolente, carioquíssimo, o rapaz saiu do mar e passou por nós, embevecidos com o emblema da cerveja Brahma tatuado em seu peito.

A arte, cujo sentido ainda não compreendi, talvez esteja no antagonismo de juntar uma das maiores marcas de contracultura da história, com o que há de mais sistemático, organizado, pastoreado, programado, que é a logomarca de uma empresa multinacional (Gozado pensar que a outra experiência que vivi nesse sentido – o do antagonismo, foi com um professor de pós-graduação, conhecido e respeitado Procurador de Justiça do Rio de Janeiro, cuja imagem seria mais facilmente associada à de um Hell’s Angel com o corpo quase fechado por tatuagens, e que, segundo a lenda, viajava todo ano à Polinésia para acrescentar um desenho ao corpo).

A partir dali, começaram a pipocar tatuagens tribais sem sentido, desenhos animados,  nomes de namoradas, as indefectíveis fotos de bebês (!), estrelinhas como as da Monique Evans, copiadas pelo Léo Moura, e tudo foi piorando, e piorando, e piorando, a ponto de hoje em dia ser cult ter o corpo limpo.

Contribuiu para isso, tenho certeza, a propaganda de médicos que dizem ter descoberto um meio de acabar com tatuagens indesejadas. Assim, a madrinha de bateria está livre para tatuar no bumbum o nome que desejar, e a cada ano pode apagar e tatuar outro, por toda a eternidade (tivessem descoberto alguns anos antes, enterrariam a citada composição do Chico).

Eu admito que tatuagem seja algo pessoal e seu significado interesse apenas ao dono do corpo (e nem vou falar de um tempo em que o ‘íntimo’ perdeu o sentido, isso é outro papo), mas o fato é que chegamos ao tempo em que uma tradição usada (pelo bem e pelo mal) por milênios como meio de identificar singularidades de determinados povos se transformou em algo tão comum, que não serve mais para identificar ninguém. Melhor, identifica a todos como iguais.

Infeliz amarelo, num mundo em que todos gostam do azul.

Nenhum comentário:

Postar um comentário