terça-feira, 7 de julho de 2015

Sobre pais, filhos, livros e carreira.



. O mês de julho sempre foi festejado na família. Comemorávamos meu aniversário, junto com o do meu pai e o da minha avó. Numa dessas coincidências incríveis nasci no mesmo dia do mesmo mês que o meu pai e que a mãe dele.

. Meu filho lentamente se torna um astro do rock. Pode parecer exagero, deve ser mesmo exagero, coisa de pai. No último final de semana subiu ao palco consagrado do Beco das Garrafas para se apresentar com sua banda.

. Meu pai passou a ler depois de velho. Torci o nariz quando mostrou os livros do Sidney Sheldon. Badu era assim, quando gostava de algo, caía matando. Comprou cerca de dez livros do autor em menos de seis meses. Não sei ao certo quantos foram lidos.


Eu e Badu em visita a minha avó nas comemorações de 1989.

. Meu pai faleceu em 2013. Ano passado não comemorei meu aniversário, não faz sentido cantar parabéns sem o velho ao meu lado soprando as velas.

. Depois do show da banda do Guilherme, que não pude assistir por estar na Flip, conversamos sobre carreira. Precisa ser trabalhada com paciência. Meu filho estuda música a todo o momento, desde os seis anos. Não estou falando de oito, ou dez horas por dia. Não existe um só minuto em que ele não esteja musicando.

. Julho tornou-se um mês triste.

Guilherme e sua primeira guitarra.

. O primeiro romance que tentei escrever contava oitenta e três páginas quando o meu velho PC deu pau. Levei onze anos para voltar a produzir.

. Além de usar camisinha e tentar se manter longe de drogas ilícitas, aconselhei meu guri a nunca desistir da carreira. O início vai ser uma merda, o que é bom para dar liga. Brindamos com uísque doze anos.

. 
Meu pai morreu antes de ver publicado meu primeiro livro. Gostaria de saber sua opinião. Ainda que não fosse um perito literário, era sincero o suficiente para dizer que não gostou. Se fosse o caso, aconselharia o filho caçula a voltar para os tribunais.

Estreei na Flip participando de mesa sobre 
literatura policial na casa Off Flip das Letras.

. Não pretendo usar mais terno e gravata. Abro exceções para cerimônias de entregas de prêmios com traje obrigatório porque ainda sou um autor novato que sonha – e muito – em ser premiado.

. Quando era criança, fomos a uma feira de livros promovida pela escola primária em que estudávamos. Quis comprar um livro que contava a história de um cachorro abandonado. Meu irmão mais velho – que tomava conta do dinheiro – não deixou.

. Participei de uma mesa de debates em um evento paralelo à Flip 2015. Falamos sobre literatura policial, a casa ficou cheia e a conversa foi divertida. No dia seguinte, ainda embriagado pelo ego, tive de lidar com as diversas notícias sobre o show do meu filho em sites de celebridades.

Valéria Martins (Oasys Cultural) mediando a conversa com 
Luiz Biajoni, à minha esquerda, e Raphael Montes, à minha direita.

. Meu pai pensou em financiar minha carreira, quando decidi voltar a escrever. Mandou-me procurar editoras que publicassem por encomenda. Faria o que fosse necessário para ver meus livros nas prateleiras das livrarias.

. Comprei uma guitarra Gibson para o Guilherme com parte da herança que me coube.

. Estava enfiado no meio do mato, quando a Folha de São Paulo publicou uma crítica favorável do Santiago Nazarian ao meu primeiro romance. Ao voltar para a cidade, dois dias depois, li mais mensagens de felicitação nas minhas contas em redes sociais do que já havia recebido em todos os anos por ocasião de meu aniversário.

Guilherme (camisa branca) e banda no Beco das Garrafas:
o cabelo na cara ele herdou do Slash.

. Guilherme, meu filho, passou um ano estudando a música Wave para a prova prática do conservatório. 365 dias sem interrupção. Aprendeu a tocá-la em todos os tons, ritmos. Aprendeu a música de trás pra frente.

. Culpo meu irmão por eu ter quatorze gatos, dois cavalos e um cachorro. Nunca mais encontrei o livro do cachorro abandonado pra vender. Minha mulher, por seu turno, nunca mais conseguiu ouvir Wave, culpa do conservatório.

. Trocaria minha carreira literária por um assento na primeira fila do primeiro show que meu filho fizesse (ou fizer) no Carnegie Hall, ou no Olympia, ou no RMCH, ou no CBGB, ou em Montreux, ou no Rock in Rio, ou no Monsters of Rock, ou no  Smithsonian, ou no Lollapalooza, ou no Download Festival, ou no Glastonbury, ou no Rock in Park, ou no Wacken, etc.

. Gosto de frequentar eventos literários (com bebidas liberadas, adoro). A casa Rocco distribuiu uma das melhores cervejas artesanais produzidas no Brasil em seu coquetel na Flip 2015, que acontecia no exato momento em que Guilherme subia no palco em Copacabana para o show mais importante de sua recém-nascida carreira. Um brinde.

Eu e o velho em nosso último aniversário juntos.

. Penso que meu pai achava triste o mês de julho, depois que minha avó morreu. Nunca conversamos sobre isso. Continuamos soprando velas em silêncio.

. Quando a professora nos chamou para conversar sobre o Guilherme, ficamos preocupados. Quando ela disse, porém, que era um ótimo menino e que seu ouvido estava aberto para música, ficamos felizes. Anos mais tarde, voltamos a nos preocupar quando ele disse que quer ser músico.

. Guilherme aprendeu a tocar flauta com seis anos, talvez sete.

. Meu filho nunca nos deu trabalho, mas prometeu que se fizer muito sucesso vai nos dar uma pick up 4x4 nova para eu e sua mãe sumirmos no meio do mato. 

. Eu quero netos.

. Doei os livros do Sidney Sheldon que herdei do meu pai.



Trilha sonora:

terça-feira, 5 de maio de 2015

O melhor do mundo



Estava enfiado no melhor pijama, acompanhado de um copo de Coca-Cola e um pedaço de pizza de frango com catupiry. Sentei no sofá e liguei a televisão. Estava prestes a começar meu programa favorito, em que bandas de música disputam um lugar ao sol. Tudo corria bem, até que um dos jurados resolveu dizer que o melhor cantor de samba de todos os tempos se chama Péricles.

Listas de melhores costumam encher revistas e jornais em épocas específicas, como virada de ano, década, século. No caso de veículos especializados, o prazo pode ser ainda menor, como a Billboard que mantém constantemente atualizada uma lista com os maiorais da música mundial.

Mas nem a Billboard, mídia das mais valorosas da história da música, tem a pretensão de indicar o melhor. Suas listas são baseadas nos mais vendidos (ou executados), porque o melhor é pessoal.
Comecei a pensar.

O melhor beijo é o da minha esposa. O gosto, o tato, o jeito de apertar meus lábios é o que faz querer beijá-la todos os dias. Por isso ela se tornou minha esposa, tudo nela é melhor – é o que acho.

Meu guri é o mais genial, mais bonito, mais carinhoso filho que existe. Gente fina até o talo. Melhor guitarrista com quem eu tive o prazer de tocar.

O melhor time de futebol do mundo veste vermelho e preto e mora em frente à Lagoa Rodrigo de Freitas, mas a metade da cidade discorda disso (azar o deles). A única escola de samba que deveria existir tem plumas verdes e rosas.




A melhor moqueca já feita pelo homem, na verdade era preparada por uma mulher, minha avó Lekinha. Já, a melhor costela de boi você vai encontrar no Escondidinho, no Centro do Rio de Janeiro, e o melhor galeto bunda de fora fica no edifício Avenida Central.

Existe uma torta de bem casados em uma parada de estrada que me fez acreditar no amor que Deus sente pelos homens e virou tradição de viagem na minha família, ninguém nunca vai fazer uma torta melhor do que aquela.

Se a garganta secar e o papo pedir uma loura você pode optar pelo chope sempre gelado do Sindicato, ou subir a Serra e procurar pela Vila de Terê, ou a Ranz de Lumiar, melhor cerveja não há.

A praia da Barra é a mais gostosa do Rio de Janeiro e a Urca é sem dúvida o melhor bairro da cidade, com honrosas menções a Copa e Tijuca.

A melhor banda do mundo é o Rush, integrada pelos melhores instrumentistas vivos no mundo, que apresentaram o melhor show da história da música contemporânea, em 2002, no Maracanã. Ninguém se iguala ao trio canadense em execução e composição de rock. Mas o melhor vocal que já se ouviu por aí sai da goela do Dio, que voz!




O que não se discute é que Dark side of the moon é o melhor disco gravado na história da música, revoga-se qualquer opinião contrária. O segundo melhor é The Heart of the Saturday Night, do Tom Waits.

Falam muito de Mozart e Bach, mas ninguém compôs tão bem quanto Bethooven, o compositor da mais bela canção soprada pelo homem: Sinfonia nº 9 em ré menor, Op. 125.

O Estrangeiro é o melhor livro que já foi escrito, mas os melhores escritores vivos são todos meus amigos – ou quase todos, ou quase amigos. Adoro os contos e os romances do Michel Laub (como eu gostaria de escrever como ele), as mais belas crônicas são escritas pelo Pellanda, mas o melhor e mais promissor escritor brasileiro é o Montes.

O melhor sambista de que se tem conhecimento foi o Angenor de Oliveira, mas existiram o Nelson e o Zé Ketti. Tinha também o João, com quem tive o prazer de passar uma madrugada conversando, em um bar com samba lá na periferia de Niterói, poucos meses antes de sua morte. Existiram o portelense Antônio e a Mineira Guerreira. Tinha o branquelo letrado da Vila, o boca torta do Noel, e o malandro do Estácio, seu amigo Ismael. Tinha o Paulo, Tem Paulinho. Tem Sargento, teve Elizeth, que minha avó Doxinha jura ser sua prima por vias transversas. Teve Jamelão, hoje tem Beth. Até o Chico é bom de samba (apesar da opinião dos outros). A melhor roda que frequentei era puxada pelo Memória do Samba, grupo natimorto lá nos idos do ano 2000. O samba-enredo que me arranca do chão disputou e ganhou o carnaval de 1969 – tanta gente competente que produziu história.




Pensei em tudo isso quando ouvi o jurado do programa falar que o Péricles é o melhor cantor de samba de todos os tempos. Pensei em tudo que amo, que exalto como as melhores coisas do mundo. Tentei compreender por que a moqueca da minha avó, Dio, Ranz, Camus, a boca da minha mulher. Por que foram essas as coisas que me conquistaram e habitam meu pequeno altar íntimo de adoração.

Amamos as coisas por algum motivo. Conhecer esse motivo, porém, não é tão simples, nem necessário. A empatia está acima da razão, mais ligada aos sentidos, mesmo aquelas aparentemente mais racionais, como o livro favorito. O meu melhor pode ser horrível pra você, o que não piora o que sinto por ele, ou melhora o que você sente.

Lembrei-me, ainda, que o mesmo sambista jurado que elevara Péricles ao posto mais alto dos bambas havia afirmado, alguns anos atrás, ter ele próprio mudado a história do mais importante gênero musical brasileiro.

Ora, é só a opinião dele, nada que deva me tirar do sério. Não vou perder mais tempo com isso, concluí.


A pizza já estava fria e o refrigerante quente. Olhei pra minha esposa, esparramada no outro sofá e resmunguei, “Calabresa é muito melhor que frango com catupiry”.






Você decide quem é o melhor sambista de todos os tempos, pra você:


sexta-feira, 13 de fevereiro de 2015

E por falar em saudade



Tenho escrito muito sobre saudade. Lembranças da infância, do meu pai, das cosias boas que vivi. Pode ser o avanço da idade. A maturidade se aproxima e percebi, enfim, que não sou mais adolescente. Meu filho fez vinte anos, está na hora de me tornar adulto.

No momento em que decidi mudar o tom, abraçar o carnaval e escrever sobre o futuro, sobre festas, a alegria da vida, chega a notícia: um amigo de infância morreu aos 36 anos. Triste notícia.

Quando alguém tão novo morre é comum nos perguntarmos o porquê; qual o sentido? Nessa hora, é curioso notar, também, que o questionamento que a humanidade julga como essencial é justamente a respeito do sentido da vida.

Nunca me debrucei sobre essas perguntas. Tampouco busquei, para elas, respostas na filosofia, literatura, religião, matemática, futebol, samba e roquenrou. Depois que o Rafael morreu, no entanto, tenho pensado no assunto.

Parece-me que a única resposta viável é que o sentido da vida é a própria vida. É dar objetivo à existência. Viver da melhor forma possível até que a chama piloto se apague de vez (para além de questões meramente religiosas).

Pessoas preferem viver em contato com a natureza, pessoas preferem ir a estádios de futebol, pessoas preferem escrever livros, pessoas preferem dedicar a vida a causas humanitárias, à causa animal, ambiental, política. Essa devoção é o caminho e quem vive aquilo que ama já encontrou o próprio significado.

Macaco Prego nas Paineiras: Foto de Rafael P. Brandão que compartilhei na minha time line do Facebook

Não pretendia fazer dessa crônica um epitáfio, mas depois de chegar a essa conclusão e assistir às muitas homenagens prestadas ao amigo morto, rever as centenas de fotografias que ele produziu nas dezenas de viagens que fez pelo país buscando precisamente o melhor registro do lugar mais bonito que pudesse visitar, sou forçado a concluir que, antes de mim, ele já havia encontrado a resposta. Ele sabia viver e estava apreciando cada momento.

Não à toa, na última vez em que estivemos pessoalmente juntos (nos encontramos por acaso no metrô), ele veio em minha direção e eu estendi a mão. Como era de sua índole, ele sorriu e preferiu abrir os braços. Em seguida, veio um abraço apertado, coisa de quem está satisfeito, realizado. Coisa de gente feliz e que ama.

Já, quanto ao questionamento naturalmente indignado de quem vê alguém assim deixar a vida precocemente e que deu origem a essa crônica, a única resposta viável é que se trata da exata oposição. A interrupção da vida é a ausência de sentido (para além das questões meramente religiosas, que fique claro), é a ausência de respostas. A vida, uma página em branco; a morte, a página que falta.

E o que resta mesmo é a saudade, e que saudade!







terça-feira, 20 de janeiro de 2015

Saudade é uma palavra que só se escreve em peito vazio

Eu e meu irmão montados no Chucrute

Vendemos a casa. Não um imóvel comum, mas a casa que meus pais compraram exatos nove meses antes de eu nascer. Passado um ano da morte do velho, já não fazia sentido mantê-la.

Não houve tempo de sentir saudade. Na última semana gastamos o tempo que havia pra senti-la, encaixotando a vida inteira de uma família. Desde os desenhos feitos por mim e meu irmão no jardim de infância aos móveis pesados. Mas não me iludo, ela virá. Tudo importante que fica pra trás, faz falta.

Eu e Chulé, o primeiro gato.

Chico Buarque criou uma das mais pedagógicas letras escritas em português (dentre todas aquelas músicas geniais que ele compôs), em que ensina que a ‘saudade é arrumar o quarto do filho que já morreu’.

Arrumar a casa, caixa por caixa, provoca uma mistura de sentimentos que vão além da saudade. Ver os caminhões de mudança chegando e partindo, os amigos guardando recordações, os animais com o olhar perdido forçam um inevitável nó na garganta. 

Eu e Chris em nosso primeiro réveillon juntos
           
Preferi não olhar pra trás. No início pensei em tirar uma última fotografia ao lado da minha mãe e do meu irmão. Eu que não estava lá quando eles chegaram, no longínquo 1975, ajudei a esvaziar o sonho dos meus pais. O velho tinha tamanha devoção pelo lar que construiu e dedicava tanto tempo de sua vida a ele, que as primeiras a sentirem sua falta foram certamente aquelas paredes.

A pessoa que comprou a casa, um senhor poucos anos mais novo que meu pai, disse que não estava comprando uma casa, mas uma lembrança. Na primeira visita que fez lembrou-se de sua infância, memória que desejava reconstruir. Isso é possível, às vezes., o que não diminui meu inconformismo diante do fim de coisas que deveriam ser eternas. Minha luta contra a saudade.

Terceira geração: Meu filho Guigui e meu afilhado João Guilherme

Não da casa. Minha família tem projetos novos e está mais do que na hora de construir os meus sonhos ao lado da minha esposa e do meu filho. Quem sabe um dia, se eu estiver pensando em reviver aquele passado, não possa recriá-lo em algum lugar que me lembre, como lembrou ao comprador, o lar da minha infância?

Minha mãe, linda, se preparando para defender o lobo mau do meu ataque iminente

Isso, no entanto, é nostalgia. Em doses pequenas e controladas faz bem à alma. Em outra perspectiva não fazem a menor diferença, é só uma percepção de tempo. Há pouco ouvi um dos muitos especialistas que proliferam pelo mundo (não lembro a especialidade desse) dizer que o tempo do mundo mudou. Ele afirmava que a velocidade da vida é tão maior atualmente que crianças de dez anos se queixam de nostalgia. Já ouvi garotos de vinte anos afirmando que ‘no seu tempo’ alguma coisa era melhor do que é hoje.

Eu e o velho

Saudade é diferente. Saudade é o vazio provocado pelo deslocamento de algo importante. Pior quando esse deslocamento é definitivo. Saudade é dor, é ausência de sorriso e um dia ela vai arrancar água dos teus olhos, impiedosa. Resta esperar ela chegar.