quarta-feira, 15 de agosto de 2012

O nariz

uma de minhas raras fotos de perfil



Os motivos pelos quais eu poderia odiar meu nariz não são poucos. Ele é grande e feio. Curvado, mais ou menos na metade do percurso entre o vinco das sobrancelhas e as narinas. Projetado por um osso (ou será cartilagem?) inconveniente que resolveu aparecer por ali quando eu tinha uns sete, oito anos.

Excluída a infelicidade estética, eu sofro de rinite alérgica. Portanto, em tempos muito secos, ou úmidos demais, além do tamanho que já tem, ele fica vermelho, e eu parecendo a rena trouxa do Papai Noel.

Outra das impertinências diz respeito ao início da minha juventude. Fui adolescente de temperamento difícil. Qualquer besta cinco centímetros mais alta e vinte quilos mais pesada conseguia facilmente me irritar, a ponto de arranjar uma briga e me fazer voltar para casa cuspindo marimbondos com o nariz partido.

Sem falar em outras inconveniências que vão desde apelidos à paranoia incompreendida de me recusar peremptoriamente a tirar fotografias de perfil.

E mesmo com tudo isso, ou apesar da real disposição genética de ser um velhinho com pelos saltando freneticamente das narinas, eu gosto do meu nariz. E vou te dizer por quê: De todos os sentidos, da visão à audição, passando pelo tato e pelo paladar, nenhum se compara ao olfato. É primordial, é ancestral. Se a capacidade racional nos diferencia, o olfato nos iguala a todos os outros seres. Em tempos pós-modernos de alta tecnologia, é pelo olfato que mais nos aproximamos do nosso cachorro e do que somos em essência.

Fica na lembrança, como nenhuma fotografia ou música, o cheiro de bloqueador solar que a mãe chafurda no nosso nariz antes de chegar à praia. Ou, melhor que qualquer toque em tecido fino ou pele suave é o cheiro do perfume que infestou o primeiro beijo. No que o cinema 3D supera o cheiro do quarto do sítio do avô perdido em alguma estrada da serra?

Nenhum prato do Cordon Bleu eleva mais o espírito que o cheiro do corredor de acesso às arquibancadas do Maracanã num dia de final de campeonato estadual. E é uma tarde de domingo ensolarado, é verão, e você chega abraçado à perna do seu pai, e aspira o suor e a cerveja que seu pai leva na mão, e o cheiro do gramado (verde, verde) recém-molhado, que sobe pela geral, cobre as cadeiras e arrebata as arquibancadas. O cheiro do cigarro do velho irritadiço que xinga o Nunes e depois levanta pra comemorar o gol do “maior centroavante que o Flamengo já teve”. O cheiro da pipoca doce misturado ao mofo da bandeira que ficou guardada tempo demais dentro do armário, a volta para casa no ônibus, o escapamento do ônibus e mil pessoas se espremendo no ônibus, cada uma delas com um cheiro diferente.

O olfato é a fotografia que não depende da fixação de imagens em uma película por obra da exposição de luminosidade intensa, mas apenas de sensíveis receptores, pequeninas células, impulsos elétricos involuntários, que enviam ao cérebro mais que uma imagem, um gosto, um toque, um som. Enviam histórias das quais somente lembramos quando essa fantástica máquina do tempo funciona e damos o primeiro passo na direção daquilo que fica realmente guardado, esquecido, abandonado, e ressurge violento como o cheiro de gasolina, e enjoa, emociona, irrita, agrada, leva a um canto que fica escuro na maior parte do tempo.

Daí que, se um dia você me ouvir ranzinza reclamar do meu nariz, tenha a certeza de que estou sendo mais tato que olfato. Ou as lembranças são ruins – que elas também existem.



* Crônica desenvolvida na excelente oficina de Arnaldo Bloch - Escrita como libertação (recomendo).

Um comentário:

  1. Hehehe! Tbm tenho um nariz assim, e ele ainda é torto... mas amo meu nariz! Ótima crônica, Fernandão!

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