uma de minhas raras fotos de perfil
Os
motivos pelos quais eu poderia odiar meu nariz não são poucos. Ele é grande e
feio. Curvado, mais ou menos na metade do percurso entre o vinco das
sobrancelhas e as narinas. Projetado por um osso (ou será cartilagem?)
inconveniente que resolveu aparecer por ali quando eu tinha uns sete, oito
anos.
Excluída
a infelicidade estética, eu sofro de rinite alérgica. Portanto, em tempos muito
secos, ou úmidos demais, além do tamanho que já tem, ele fica vermelho, e eu
parecendo a rena trouxa do Papai Noel.
Outra
das impertinências diz respeito ao início da minha juventude. Fui adolescente de
temperamento difícil. Qualquer besta cinco centímetros mais alta e vinte quilos
mais pesada conseguia facilmente me irritar, a ponto de arranjar uma briga e me
fazer voltar para casa cuspindo marimbondos com o nariz partido.
Sem
falar em outras inconveniências que vão desde apelidos à paranoia
incompreendida de me recusar peremptoriamente a tirar fotografias de perfil.
E
mesmo com tudo isso, ou apesar da real disposição genética de ser um velhinho
com pelos saltando freneticamente das narinas, eu gosto do meu nariz. E vou te
dizer por quê: De todos os sentidos, da visão à audição, passando pelo tato e
pelo paladar, nenhum se compara ao olfato. É primordial, é ancestral. Se a
capacidade racional nos diferencia, o olfato nos iguala a todos os outros
seres. Em tempos pós-modernos de alta tecnologia, é pelo olfato que mais nos
aproximamos do nosso cachorro e do que somos em essência.
Fica
na lembrança, como nenhuma fotografia ou música, o cheiro de bloqueador solar que
a mãe chafurda no nosso nariz antes de chegar à praia. Ou, melhor que qualquer
toque em tecido fino ou pele suave é o cheiro do perfume que infestou o
primeiro beijo. No que o cinema 3D supera o cheiro do quarto do sítio do avô
perdido em alguma estrada da serra?
Nenhum
prato do Cordon Bleu eleva mais o
espírito que o cheiro do corredor de acesso às arquibancadas do Maracanã num
dia de final de campeonato estadual. E é uma tarde de domingo ensolarado, é
verão, e você chega abraçado à perna do seu pai, e aspira o suor e a cerveja
que seu pai leva na mão, e o cheiro do gramado (verde, verde) recém-molhado,
que sobe pela geral, cobre as cadeiras e arrebata as arquibancadas. O cheiro do
cigarro do velho irritadiço que xinga o Nunes e depois levanta pra comemorar o
gol do “maior centroavante que o Flamengo já teve”. O cheiro da pipoca doce
misturado ao mofo da bandeira que ficou guardada tempo demais dentro do
armário, a volta para casa no ônibus, o escapamento do ônibus e mil pessoas se
espremendo no ônibus, cada uma delas com um cheiro diferente.
O
olfato é a fotografia que não depende da fixação de imagens em uma película por
obra da exposição de luminosidade intensa, mas apenas de sensíveis receptores,
pequeninas células, impulsos elétricos involuntários, que enviam ao cérebro
mais que uma imagem, um gosto, um toque, um som. Enviam histórias das quais
somente lembramos quando essa fantástica máquina do tempo funciona e damos o
primeiro passo na direção daquilo que fica realmente guardado, esquecido,
abandonado, e ressurge violento como o cheiro de gasolina, e enjoa, emociona, irrita,
agrada, leva a um canto que fica escuro na maior parte do tempo.
Daí
que, se um dia você me ouvir ranzinza reclamar do meu nariz, tenha a certeza de
que estou sendo mais tato que olfato. Ou as lembranças são ruins – que elas
também existem.
* Crônica desenvolvida na excelente oficina de Arnaldo Bloch - Escrita como libertação (recomendo).
Hehehe! Tbm tenho um nariz assim, e ele ainda é torto... mas amo meu nariz! Ótima crônica, Fernandão!
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