A Metamorfose: Gregor Samsa se transforma em um inseto horripilante
Cena 01:
Senhora muito
idosa, de cabeça branca, parada na calçada, com olhar desamparado voltado para
porta aberta de um ônibus.
Lá dentro,
sentado em seu trono, o motorista dispara:
“Sem
identidade e sem cartão de gratuidade, não posso liberar.”
O escritor,
que passava à toa pela local, para ao lado da velhinha e pergunta:
“É sério isso?”
O escritor sai
apressado antes de ouvir o Motorista-Rei mandá-lo guardar a petulância numa
parte secreta de sua anatomia.
Para quem leu ‘O Processo’ antes
de se deparar com situações como essa, todo absurdo faz mais sentido. E cada
vez mais, somos atores dessa farsa, onde a subversão da ordem comum, da
gentileza e do ‘normal’ torna-se regra.
Poderia roteirizar inúmeras cenas
semelhantes, tomando emprestado como cenário o Rio de Janeiro. Por exemplo, o
povo cansado voltando do trabalho, ansiando por um banho relaxante e um prato
de comida, sendo obrigado a ouvir o funk que o ‘amigão’ coloca no último furo dentro
do metrô, ou o sujeito que acende despreocupadamente seu cigarrinho na mesa do
restaurante fechado.
Invariavelmente, pessoas que
praticam despropósitos não compreendem a reação de terceiros, por que são parte
do próprio quadro. Sua lógica é outra, em sentido inverso, assim como para o
policial entrar no quarto de Joseph K. pela manhã, sem ser anunciado, é algo
que deveria ser esperado.
Faz tempo que prefiro interpretar
esse movimento comportamental não como consequência de algo maior, como falta
de investimento em educação, mas como um movimento evolutivo – nem tudo evolui
para o bem. Já escrevi antes, as coisas são como são e fazer esforço para mudar
sua natureza é tentar nadar em terra firme.
Esses quadros kafkianos que surgem – com maior
frequência – em nosso cotidiano são provas dessa teoria. Não estamos mais mal
educados, somos mal educados. Não estamos menos gentis, somos nada gentis, o
que José Datrino notou faz tempo, ele próprio nadador profissional de terra
firme.
Daí surgem expressões como a do
escritor, que estupefato diante da cena 01, nada lógica, ou gentil, consegue
apenas perguntar ‘é sério isso?’, mas não tem força para modificá-la. Resta a
ele escrever sobre o assunto e vamos seguindo.
E não pense você que está livre
de trocar de papel. Certamente esse escritor já cometeu equívocos tão cabeludos
quanto o do motorista, é tudo questão de oportunidade e perspectiva.
Talvez o tempo ensine melhor uns,
que outros, a lidar com situações como essa, pois no fundo a vida é um grande
absurdo e tem gente que sabe interpretar melhor o papel. O que me faz lembrar
da segunda cena, ocorrida uns dez anos antes, com outros atores, outro cenário,
outro desfecho.
Cena 02:
Senhora muito
idosa, de cabeça branca, entra na fila preferencial do supermercado empurrando
com dificuldade o carrinho repleto de compras.
Funcionária
que opera o caixa cerra os olhos, crispa os lábios e dispara:
“Por que você
entrou nessa fila? Por acaso é idosa?”
A velhinha
ajeita o corpo, estufa a barriga e responde fleumática:
“Não filhinha,
é que eu estou grávida.”
Funcionária
abaixa a cabeça. Clientes em volta caem na gargalhada. Minha avó nunca leu
Kafka.
* todas as cenas descritas são verdadeiras, e você ainda topará com uma delas.
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