quinta-feira, 25 de outubro de 2012

É sério isso?

A Metamorfose: Gregor Samsa se transforma em um inseto horripilante


Cena 01:
Senhora muito idosa, de cabeça branca, parada na calçada, com olhar desamparado voltado para porta aberta de um ônibus.
Lá dentro, sentado em seu trono, o motorista dispara:
“Sem identidade e sem cartão de gratuidade, não posso liberar.”
O escritor, que passava à toa pela local, para ao lado da velhinha e pergunta:
“É sério isso?”
O escritor sai apressado antes de ouvir o Motorista-Rei mandá-lo guardar a petulância numa parte secreta de sua anatomia.


Para quem leu ‘O Processo’ antes de se deparar com situações como essa, todo absurdo faz mais sentido. E cada vez mais, somos atores dessa farsa, onde a subversão da ordem comum, da gentileza e do ‘normal’ torna-se regra.

Poderia roteirizar inúmeras cenas semelhantes, tomando emprestado como cenário o Rio de Janeiro. Por exemplo, o povo cansado voltando do trabalho, ansiando por um banho relaxante e um prato de comida, sendo obrigado a ouvir o funk que o ‘amigão’ coloca no último furo dentro do metrô, ou o sujeito que acende despreocupadamente seu cigarrinho na mesa do restaurante fechado.

Invariavelmente, pessoas que praticam despropósitos não compreendem a reação de terceiros, por que são parte do próprio quadro. Sua lógica é outra, em sentido inverso, assim como para o policial entrar no quarto de Joseph K. pela manhã, sem ser anunciado, é algo que deveria ser esperado.

Faz tempo que prefiro interpretar esse movimento comportamental não como consequência de algo maior, como falta de investimento em educação, mas como um movimento evolutivo – nem tudo evolui para o bem. Já escrevi antes, as coisas são como são e fazer esforço para mudar sua natureza é tentar nadar em terra firme.

Esses quadros kafkianos que surgem – com maior frequência – em nosso cotidiano são provas dessa teoria. Não estamos mais mal educados, somos mal educados. Não estamos menos gentis, somos nada gentis, o que José Datrino notou faz tempo, ele próprio nadador profissional de terra firme.

Daí surgem expressões como a do escritor, que estupefato diante da cena 01, nada lógica, ou gentil, consegue apenas perguntar ‘é sério isso?’, mas não tem força para modificá-la. Resta a ele escrever sobre o assunto e vamos seguindo.

E não pense você que está livre de trocar de papel. Certamente esse escritor já cometeu equívocos tão cabeludos quanto o do motorista, é tudo questão de oportunidade e perspectiva.

Talvez o tempo ensine melhor uns, que outros, a lidar com situações como essa, pois no fundo a vida é um grande absurdo e tem gente que sabe interpretar melhor o papel. O que me faz lembrar da segunda cena, ocorrida uns dez anos antes, com outros atores, outro cenário, outro desfecho.


Cena 02:
Senhora muito idosa, de cabeça branca, entra na fila preferencial do supermercado empurrando com dificuldade o carrinho repleto de compras.
Funcionária que opera o caixa cerra os olhos, crispa os lábios e dispara:
“Por que você entrou nessa fila? Por acaso é idosa?”
A velhinha ajeita o corpo, estufa a barriga e responde fleumática:
“Não filhinha, é que eu estou grávida.”
Funcionária abaixa a cabeça. Clientes em volta caem na gargalhada. Minha avó nunca leu Kafka.


* todas as cenas descritas são verdadeiras, e você ainda topará com uma delas.

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