segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

Surpresa!



Uma das melhores frases que li esse ano... talvez tenha sido ano passado... enfim, uma das melhores frases que li recentemente estava no meio de uma coluna da Carol Bensimon, no blog da Companhia da Letras, e estava prenhe de um sentimento que também tem me assaltado com frequência, a maior aleatoriedade a que estamos sujeitos ultimamente está na função shuffle do MP3.

Como não encontrei novamente o texto, não posso afirmar que tenha sido escrita com essas palavras exatas, mas o sentimento, ou o pensamento, é esse mesmo. Acabaram-se as surpresas. Melhor, vivemos em um tempo em que desejamos controlar as surpresas.

Antes mesmo de aprender a lidar com todas as funções do Iphone 5, já estamos preocupados com as inovações do seu sucessor. Suspeito que um adolescente da década de 2010 jamais compreenderá o significado da frase ‘é menino’, dita por um médico após o parto numa cena clichê de novela dos anos 1980. E mesmo o resultado de uma prova deixou de ser uma incógnita, em um tempo em que os cadernos de questões são entregues aos concursandos que, ao colocar o pé na calçada, já descobrem quantas e quais respostas estavam certas ou erradas. O ‘futuro’ não é mais desconhecido?

No texto, a escritora mencionava uma cena de filme em que três jovens atravessavam um túnel em um carro conversível quando de repente (!) começa a tocar no rádio sua música favorita, o que transformaria aquele momento em algo único, especial, e encerra a discussão, cenas como essa são cada vez mais improváveis.

Dominar o futuro é um anseio do homem desde sempre (vide a astrologia, os profetas). Sob a desculpa de evitar desgraças e construir um futuro melhor, busca-se de toda forma antever o que vem adiante. Não posso afirmar que esse sentimento move os fanáticos por aparelhos de telefone celular (sim, eles existem e estão em maior número do que se pode imaginar), mas certamente hoje estamos menos preparados para surpresas, para lidar com o incontrolável.

Lembrando que surpresas nem sempre são positivas, em breve surgirá uma legião de frustrados. Quando descobrirmos que não é possível por cabresto no porvir sentaremos como enormes bebês esperneando sem que haja uma mãe universal que nos dê atenção.

Podemos descobrir o que se passa na cabeça dos gênios da Apple, mas continuaremos sem descobrir (honestamente) os números da loteria antes do sorteio. Conseguimos descobrir (há quem afirme até que podemos escolher) o sexo de nossos filhos antes mesmo que saiam de nossos ventres, mas nunca poderemos adivinhar quando ou como morrerão nossos pais. Podemos definir a data das férias, mas não somos capazes de prever com real eficácia se estará chovendo ou se fará sol na mesma semana.

É a graça da vida. Tive a felicidade de viver momentos ‘únicos’ como o descrito pela Bensimon. Experiências que se tornaram inesquecíveis não apenas pelo que representavam, mas por culpa da surpresa da ocasião, e foram necessárias, e continuarão a ser.

Por via das dúvidas, não ligo mais a função shuffle do MP3, venha o que tiver de vir.


Musicas que muito, pouco ou quase nada tem a ver com o texto:

quarta-feira, 18 de setembro de 2013

A palavra é: palavra.

O lendário Zé do Caixão, mestre da praga ficcional, ou não.





O rapaz saiu irritado. Quando colocou os pés fora da escola de samba, girou o corpo cento e oitenta graus na direção da porta, soltou uma cusparada e praguejou, "essa merda vai cair pro Grupo de Acesso". Seis meses depois, a escola foi ‘rebaixada’.
Quem assistiu ao divertido ‘Arraste-me para o inferno’ pode até não acreditar em pragas, mas sentiria calafrios ao saber que está sentado no metrô ao lado de alguém com tamanho poder de amaldiçoar; eu sentiria.
No campo do mágico/religioso, ninguém pode afirmar que o clichê ‘as palavras têm poder’ é verdadeiro, tampouco falso (quem pode afirmar o que quer que seja em matéria de fé?). Pragas fazem parte do imaginário individual e coletivo, que é ampliado por fatores culturais e religiosos. Mantras ecoam pelos lados da Ásia ‘elevando espíritos’ desde um tempo que eu não consigo mensurar. Cânticos gregorianos, salmos bíblicos (alguns repletos de praguejamento), canções pagãs, a palavra soprada pela música como instrumento de jura ou esconjuro (Não que o imprecador seja mau, em alguns casos é, mas o medidor/contentor de pragas e grosserias sofre avarias graves quando alcançamos determinados níveis de irritação ou estupidez. E, havemos de convir, a religião/fantasia pode ser tanto um caminho de evolução, quanto de limitação).
Sorte de quem trata o assunto com ceticismo. Para essas pessoas, maldições soam como bazófia.
Existe, no entanto, outro espaço, real, em que as palavras têm força comprovada: a mente. Não à toa livros de autoajuda superam limites de venda, torcidas levam times de futebol à glória ou ao inferno com cantos inflamados dos seus sentimentos mais verdadeiros. Não à toa a poesia emociona, o teatro leva à reflexão e tantos outros meios de arte e comunicação (e mesmo nas relações pessoais, profissionais, casuais) a palavra é utilizada como instrumento para atingir o íntimo alheio e modificá-lo de alguma forma.
Costumamos desprezar a importância do que dizemos, sem considerar seu caráter irredimível. Desdito é adjetivo abstrato, sem aplicação na realidade. A retificação não desintegra a palavra que ficou solta no passado (o único tempo que não deixará de existir).
Esse lugar onde tudo varia ao som da amarração das letras termina mais importante que a própria crença no acometimento da peste, pois não há rezador capaz de anular seus efeitos, não há banho de arruda, cordeiro imolado, sacrifício de primogênito capaz de aplacar a ira do cérebro.
E ainda que o homem consiga lidar com as consequências, não é possível impedir as modificações provocadas pela palavra dita/escrita/cantada. Essa é a minha fé: a palavra (e não a praga em si) tem o poder de alterar o sentido de tudo à sua grampeador.



Trilha sonora original do filme Drag me to hell.


sexta-feira, 23 de agosto de 2013

Fantasmas reais

Até a morte, condição definitiva, aceita muitas possibilidades. Para o cético, uma súbita parede negra; para o crente, um caminho, outras vidas, o paraíso. Seja qual for sua praia, certo é que a velha senhora virá ao seu encontro de foice em punho e você já pensou nisso, porque seja como (ou para aonde) for, será sempre instante e violência.
Instante. Quem viveu a trágica experiência de assistir a uma morte conhece a estranha sensação de fim que permanece por um tempo rondando a cabeça. Não o seu próprio fim, mas a morte talvez seja a perfeita definição de encerramento (não pretendo perder tempo com filosofias religiosas nesse texto). O momento em que o que é deixa de ser. Instante e morte, melhores sinônimos. Vasculhe os dicionários, descubra opção mais adequada. Não há.
Ao passo que, noutro sentido, a morte é algo que se protrai eternamente (por ser definitiva), quem morreu estará morto até o fim. É, portanto, instante e eternidade.
Violência. Para o ficcionista, apesar de parecer simples, a morte é dolorosa. Mesmo diante da possibilidade de criar, recriar, matar, reviver, matar novamente. O autor que mata é um assassino que comete o crime com premeditação - ponderação, o que muitas vezes lhe provoca angústia.
Lygia Fagundes Telles declarou em recente entrevista ao caderno Prosa (O Globo) que conversa (ou já conversou) com fantasmas de personagens que ‘matou’ em seus romances, revelando a dor que o autor em geral sente ao cometer seus crimes.
Escrevi há pouco que o trabalho do escritor (seu texto) é a materialização do que acontece dentro dele, misturado às experiências que vivenciou (essa é minha ideia sincera a respeito do ofício). Quando mata, o autor é assassino porque todo homem é assassino em potencial. Quando mata, o autor revolve esse ponto dentro de si. Tanto quanto quando trai, quando rouba, quando beija, sempre revolvendo potencialidades que o tornam sensível (ou será que consegue tocá-las por ser sensível?).
Conhecendo um tanto desse processo, invertendo a ordem, ao sair da experiência de ficcionista para retornar à vida, resta assombro diante da realidade. Matei pessoas devoradas por gente, preguei homens em paredes para que sangrassem até a morte, explodi, afoguei, envenenei pessoas. Lembro de cada uma delas, do seu rosto, seus nomes. Conhecia o que pensavam ou sentiam, a culpa que me aperta é grande e real. Eu entendo Lygia F. Telles.
Não compreendo, contudo, filhas que partem os crânios dos pais e vão ao motel. Pais que descartam filhas como sacos de lixo pela janela do apartamento. Não entendo bandos que duelam até a morte em nome de uma paixão pueril como o futebol. A esposa que mata o marido rico. O marido que mata a mulher que optou pela separação. A indiferença ao caráter irredimível da morte, aquilo que não volta atrás. O erro incorrigível. (Quando não existe, ou não encontram explicação para a morte, ou apresentam-se múltiplas versões - todas absurdas - como no caso da família chacinada pelo filho recentemente em São Paulo, minha incompreensão avança ao limite).
Se a Lygia se ressente, o que sentem esses que matam na terra dos homens de verdade? Não é a mesma emoção. Se na ficção existe a possibilidade dos fantasmas retornarem e debatermos com eles motivos e expiarmos culpas, aos assassinos do mundo de cimento restará encarar os fantasmas reais, antes ou depois de toparem com a parede negra. O que dirão? Não consigo imaginar.
Trilha da coluna:

quarta-feira, 14 de agosto de 2013

Radicais livres

Foto de David Michael Kennedy
 
 
Ninguém quer estar em cima do muro, parece errado; feio mesmo. Dizem que preferem a sinceridade, “prefiro quem diz o que pensa”, “odeio falsidade”. Mas quem está preparado para a franqueza alheia? Poucos. Corrigindo, quem está pronto para admitir que outras pessoas tenham outras opiniões, concorde-se ou não com elas? E são coisas distintas, ouvir outra opinião e concordar com ela. Mas tendem a confundi-las.
Opinião livre é um direito, quase uma necessidade do homem que evolui. Nasce quase planta que emite sons, puro instinto. Cresce, ouvindo e buscando compreender o que existe ao redor. Estabelece-se quando aprende a depurar o que viu e a transformá-lo em algo novo: sua opinião. Aí, ingressa verdadeiramente na sociedade. Ter opinião, portanto, é o destino natural de todo homem que desenvolve a capacidade cognitiva.
Alguns optam por expressá-la (ainda que pela omissão), outros por reprimi-la (esses são os tais que ficam em cima do muro, deles não me ocuparei). Seja em que contexto for, a primeira opção me parece ser a mais correta, desde que o indivíduo identifique o momento e o modo adequados.
A opinião possui leis próprias. Quando passa à expressão livre, a primeira regra que se impõe é a reação. Sempre haverá entendimento oposto (ou diferente e não necessariamente oposto) vagando no ar. Aquele que não aceita a oposição se iguala àquele que não aceita opiniões, ambos os temíveis radicais.
A tenacidade é uma qualidade indiscutível, e manter a convicção amparado seja no conhecimento, seja no sentimento/ instinto, não pode ser considerado por si só intransigência. Nesse processo evolutivo, contudo,  o grande passo é aprender a conviver com a tese contrária (quando não, mudar de opinião).
Há, nesse ponto, um estado de liberdade o qual os radicais não alcançarão (enquanto forem radicais), que toda intolerância é uma grade que se põe entre os intolerantes e o resto. Confinados em sua cabeça (espaço pequeno), restritos ao alimento que encontrarem por ali, definharão sozinhos. A solidão é o que lhes aguarda e a pena merecida.
Não é raro, contudo, vê-los em bandos, especialmente em terrenos férteis como a política e a religião. Não se iluda, sua união é uma miragem. Seu objetivo não vai além da defesa do radicalismo em si. No final, terminarão invariavelmente separados pela própria incomplacência.
Por outro lado, a liberdade é coisa simples de ser alcançada. Um passo para o lado, pra fora das próprias convicções, é capaz de abrir a cela dos radicais, que nesse instante receberão outro nome, libertos por si mesmos.
E concorde você, ou não, isso é só a minha opinião.
 
Trilha sonora: Opinião - Zé Kéti.


sexta-feira, 2 de agosto de 2013

Sessão de terapia

ou brevíssima autoanálise com ajuda da literatura

Nunca entrei numa piscina Tone. E apesar de ter cruzado a infância morando em uma casa com piscina de medidas respeitáveis, essa é uma frustração com a qual terei de lidar para sempre.
Um dos lados bons da literatura, quando se é escritor (existe lado ruim?), é poder viver experiências improváveis, num tempo distante do seu, num mundo novo criado a partir das suas fantasias, reviver cenas e recriá-las. A literatura é, portanto, entre outras coisas um excelente remédio para aliviar decepções.
Os leitores tendem a acreditar que muito do que está nos livros é autobiográfico, uma ideia em parte certa, uma vez que o trabalho do autor parte do conjunto de experiências vividas ao longo da vida, somado a muitos outros fatores. No entanto, é difícil acreditar que Agatha Christie tenha cometido os mesmos crimes que suas personagens antes de escrever cada romance.
Muitas vezes funciona como uma sessão de terapia, ou melhor - se considerarmos que os autores em geral são mais sinceros que os analisados. Pode-se criticar a qualidade de um texto, apontando-lhe os defeitos técnicos, mas não acredito ser possível identificar a falta de sinceridade de um autor, já que o seu trabalho é a materialização do que acontece dentro de sua cabeça (ou outros lugares menos determináveis), algo que sai depois de maturado, destilado por muitos anos (ou alguns segundos), às vezes sem interferência consciente.
Nesse momento o autor descobre pedaços si mesmo.
Apesar de a literatura parecer uma arte mais cerebral que a música, nesse aspecto as duas se aproximam muito. E quem acredita que fazer música é simplesmente deitar com o violão numa rede e deixar as coisas fluírem está tão enganado quanto quem pensa que escrever se resume a conhecer regras de sintaxe e ortografia. Nascem da junção do conhecimento e da sensibilidade, que é precisamente o que as eleva.
Nesse momento o autor descobre frustrações, desejos, sentimentos, características que não imaginava ter, e é tarde demais para voltar atrás, ele está exposto. Resta mergulhar de cabeça na piscina Tone.


quarta-feira, 10 de julho de 2013

Quem foi que disse que homem não chora?

Cinema Paradiso: quase me derrubou.



Meu rosto vermelho e molhado/é só dos olhos pra fora/todo mundo sabe/que homem não chora*... Mentira. Homem chora, e muito. É meio embaraçoso admitir, mais ainda revelar o que te faz chorar. É coisa guardada na cave escura e privada dos segredos inconfessáveis.
Há, no entanto, situações em que o nó na garganta se transforma em um emaranhado tão grosso e invencível que desagua em ao menos uma lágrima que escapa pelo canto dos olhos. Constrangimentos à parte, é incrível o bem estar que surge naquele mesmo instante em que o sal dos olhos toca os lábios.
Não escrevo sobre situações em que a sociedade espera o choro de qualquer ser que respira. Nada de morte, ou uma dor física insuportável. Uma notícia de doença. Coisas tristes. Não é essa emoção que me impulsiona, mas o conjunto de todas as outras emoções.
A primeira cena que me vem à cabeça são lutadores, atletas, jogadores de futebol levantando um troféu. Se for brasileiro, pode esperar dele o pranto da vitória. É atávico, tenha ele a ascendência que tiver. Por essas bandas costumamos chorar mais diante da vitória que da derrota.
As artes têm, também, papel de protagonista no chororô da rapaziada. Até pouco tempo me gabava de nunca ter chorado no cinema, até chegar ao ponto de confessar a minha esposa segredo que guardava desde os dez anos de idade, quando chorei baixinho ao final de A Missão.
Esse filme, a propósito, é a junção das duas artes que mais buscam a vitória pela ‘rasteira’ das emoções: o cinema e a música. Ataca pela visão, pelos ouvidos, pelas surpresas. Ataca o peito do espectador por todos os lados e com todas as armas. Pois sobre A Missão basta dizer que é uma película musicada por Ennio Morricone, campeão de nós na garganta com trilhas como as de Cinema Paradiso e Malèna.
Aos dez anos de idade é mesmo difícil resistir.
A música pode ser cruel. Algumas delas têm o poder divino e diabólico de arrancar o indivíduo do chão, lançá-lo o mais alto e, quando abre os olhos inundados, o marmanjo se dá conta, enfim, de que chora estimulado pelos motivos mais banais. Ele descobre que sabe chorar.
Conheço uma tropa de sujeitos que confessaram não poder escutar João Nogueira soprando Espelho. E são tantas outras que gastaria todos os megabytes disponíveis nesse blog se resolvesse elaborar uma lista curta.
Livros, acredite, podem fazer chorar, e não estou falando de autoajuda. O final impactante de ‘A Hora da Estrela’ derruba reputações de brutamontes. Infanto-juvenis costumam ensinar aos meninos que a sensibilidade não é um atributo exclusivamente feminino.
Não se surpreenda, portanto. O gol na final do campeonato, a nota que precisava para ingressar na faculdade, o reencontro com um amigo de quem se tem uma saudade incrível, o primeiro beijo ‘nela’, um presente inesperado, o convite para o emprego novo, um poema ou o (insuperável) nascimento do filho (que pode acontecer de tantas formas e tão inesperadamente) são momentos em que se você for atenta (o) e olhar para o lado descobrirá que nós choramos sim. Mas, às vezes, precisamos esconder e dizer que foi um cisco, o que não deixa a lágrima menos salgada.
 
 
* Homem não chora - Barão Vermelho.

Lista de músicas que fazem parte da trilha sonora dessa coluna:
 
 
 
 
 

terça-feira, 25 de junho de 2013

Brasil: o país do passado.

 
A tela de Pedro Américo, belo retrato do nosso faz de contas.
 
 
Eu não diria que o Brasil é um país atrasado. O Brasil é um país reativo. Existem os que fazem, descobrem, desbravam; existem os que copiam, reagem, chegam depois. Esses últimos, somos nós. Historicamente esperamos que outros façam para seguir seu caminho, ou outro melhor.
Alguns defensores da pátria podem argumentar (!) que é uma conduta precavida, afinal de contas o país não precisa pagar o ônus do risco e pode seguir por estradas pavimentadas rumo a um futuro certo. Balela.
A verdade é que sempre fomos medrosos, uns; mal intencionados, outros. Por isso estamos sempre fora do tempo.
Nossa independência foi a afirmação de um primogênito sobre o patrimônio do pai, mais ou menos como o filho da Luma ganhar uma empresa de Eike. Algo que iria acontecer, cedo ou tarde. Não houve rompimento, batalha, conquista, não há do que nos vangloriarmos. Não houve independência, houve transferência.
Era uma tendência continental, a independência dos Estados, que João evitou antecipando a legitima.
Depois disso, nosso grande progresso foi a Lei Áurea, algo do qual deveríamos nos orgulhar, se tivesse sido promulgada cem anos antes. Não existe signo mais vexatório e explícito da nossa condição de ‘país que espera pra ver no que vai dar’ do que ser o último país independente a declarar o fim da escravidão negra.
E, se contamos alguns pioneiros entre os nossos (Santos Dumont, Leônidas da Silva... desculpem, mas são os únicos dos quais consigo me lembrar agora – cartas para a redação), deve-se mais à força da genialidade individual, que a qualquer espécie de característica marcante de nossa comunidade nacional. Não construímos o hábito de sermos os primeiros.
É verdade que se a falta de pioneirismo não é motivo de orgulho, também não precisa ser motivo de vergonha. O problema é que tem sido.
Seguir os passos certos de alguém que caminhou à frente pode ser benéfico e deveria ser a escolha natural. O problema surge quando escolhemos os passos errados. Quando fazemos essa escolha, ficamos presos no passado (o tal do atraso) sem possibilidade de avanço.
O sistema de cotas raciais foi implantado nos EUA na década de 1960, como meio de diminuir a enorme diferença social entre negros e brancos, possibilitando à parcela negra o acesso ao sistema educacional de qualidade e ao mercado de trabalho.
Extinto em 2007 pela Suprema Corte daquele país, a politica afirmativa teve papel preponderante na integração racial, mas seu tempo está reconhecidamente extinto.
Pessoalmente sou favorável ao sistema de cotas como meio de acesso aos canais sociais, com as ressalvas comuns de que não deve estar restrito à cor de pele (sem aquele papo tolo de que o sistema de cotas provoca um racismo que não existe. Um dos maiores sinais de nossa prisão ao passado é o racismo/preconceito latente de TODO brasileiro), justamente porque deve servir também como meio de integração social e não apenas racial.
Pois bem, no Brasil, essa política de afirmação começou a ser discutida a partir do final da década de 1990 e colocada em prática de forma arbitrária, seguindo parâmetros equivocados, sem que se tenha ouvido a sociedade de forma ampla, na década de 2000. Ou seja, a mesma na qual os EUA a aboliram.
Outro exemplo remonta ao ano em que nasci. Em 1976, surgiu nos Estados Unidos uma igreja chamada Exodus que tinha como principal bandeira a luta contra a homossexualidade, atuando a favor da sua criminalização (!) e promovendo métodos de ‘cura gay’, desenvolvidos pelo seu líder, Alan Chambers. Bom, vocês já sabem aonde quero chegar.
Ocorre que, recentemente Chambers assumiu publicamente que sente ‘desejos homossexuais’, fechou a igreja e pediu desculpas à comunidade homossexual pelos anos de dor e sofrimento que suas ‘pregações’ causaram.
O Projeto de Lei nº 234 de 2011 está baseado numa farsa moral assumida publicamente, coincidentemente, na mesma semana de sua aprovação na CDH da Câmara Federal, no Brasil.
Vivemos em um país em que o direito de votar pelo qual uma geração lutou, se transformou em dever. Moramos em um país em que os homens são obrigados a servir às Forças Armadas. Faz vinte anos a nação ouviu o presidente dizer que nossos carros eram carroças atrasadas (sua única frase verdadeira, a despeito da demagogia implícita). Faz trinta, voltamos a votar. Faz quarenta, foram suprimidos todos os Direitos individuais. Faz cinquenta, derrubaram um presidente eleito democraticamente e aplicaram um golpe de estado. Faz sessenta, ou setenta ou oitenta de outro golpe. Há oitenta anos, mulheres não eram sujeitos de direito no que se referia à eleição e tantas outras coisas. Somos um país fora do tempo.
O estouro da boiada ao qual estamos assistindo - alguns de nós participando, surge em um momento mais adequado, mais próximo do resto do mundo. Não se pode dizer que somos pioneiros, diante do que aconteceu no Egito, na Líbia, na Síria, na Turquia, em NY. Mas a nosso favor podemos dizer que eles também não são lá tão originais. Movimentos sociais contrários ao status quo sempre ocorreram, desde Caim e Abel (o preferido).
O que vivemos talvez seja o início de algo novo para o Brasil, uma viagem no tempo. Estamos nos deslocando do passado para o presente (o futuro estará sempre longe), apesar de muita coisa ainda tentar nos prender décadas atrás.
Talvez seja a oportunidade de mudar ao menos isso, o tempo de nossas vidas, e deixar para trás quem merece ficar pra trás.


quarta-feira, 12 de junho de 2013

A cidade de plástico.

 
Cidade Lego, igual a tudo o que você tem visto por aí. Quem imita quem?
 
Quando meus pais voltaram de sua primeira viagem à Europa, no já longínquo ano de 1994, ouvi do velho uma frase que me soou ambígua e que demorei a compreender: “Como sempre imaginei, a Suíça parece uma maquete.”
Já que nunca fui ao velho continente, e por óbvio à Suíça, a ambiguidade permaneceu intocada por muitos anos, até que eu pudesse reunir senso estético e discernimento suficiente para chegar às minhas próprias conclusões.
Sempre gostei de quebra-cabeças e a lembrança mais viva que tinha daquele país vinha das fotos assépticas de paisagens estampadas nas peças de montar, além do queijo furado. Não sabia se achava bonito ou vazio (o vazio pode ser bonito, mas não aqui).
Em tempos de Brasil ‘rico’, logo surgiram prefeitos falsos progressistas que escolheram convencer o mundo de nosso avanço pelo meio mais fácil, construindo (ou tentando construir) cidades maquetes.
No caso do Rio de Janeiro, tudo começou pela orla: foi-se a vegetação rasteira nativa, chegaram as ciclovias. E a coisa foi se espalhando, e tomando a cidade, prefeito a prefeito, como se vivêssemos dentro de um Simcity Rio (a frustrada sede do Guggenheim e a fantasmagórica Cidade das Artes são tristes exemplos).
Após a confirmação da cidade como sede dos Jogos Olímpicos 2016 e palco da final da Copa do Mundo de 2014, a transformação chegou a níveis impensáveis, alavancando a especulação imobiliária e outros males, dentre os quais, a modificação agressiva e sem critério de muitos cantos da cidade.
Não sou saudosista, mesmo porque sequer tenho idade para tanto, e por isso deixo de fora da conversa a reforma do Maracanã, que já tive o prazer de conhecer reformado. Falo da cidade mesmo, de uma forma geral. Fico com a impressão de que sofremos da síndrome da atriz vaidosa que, inconformada com a velhice, prefere preencher com botox as marcas da sua identidade estampadas no rosto.
Havia poucas, mas boas referências históricas espalhadas por aí. O casario da Rua da Carioca, os Cortiços da zona da Lapa, o Morro da Conceição e os sobrados da área da Gamboa/Saúde, local aonde quero chegar.
Trabalho na Praça Mauá, localidade que sofre rápida reforma com o objetivo principal de derrubar o Viaduto da Perimetral e jogar os carros pra baixo da terra. E onde ainda existe (ou persiste) boa parte de sobrados que deveriam dar à cidade uma marca arquitetônica, uma referência temporal importante para a criação de uma identidade ao longo do tempo.
Não à toa, no início das escavações para a construção de um túnel na região, foi encontrado um verdadeiro tesouro arqueológico que pode ajudar a contar a história da ocupação da cidade, remontando ao século XVIII. As obras pararam, o tesouro enterrado foi recolhido e catalogado, mas o tesouro exposto menosprezado. Os prédios antigos dão lugar a modernos monstros de vidro espelhado que refletem nosso rosto estupefato em cada esquina.
Compreendi, então, que a questão não é achar uma cidade maquete bonita ou feia, boa ou ruim, tão somente por esse conceito. Num sentido prático, acho que deve ser bom morar numa cidade limpa e funcional, como as da Suíça.
O que me inquieta é saber que, já que podemos viver numa maquete, por que não em uma que represente nossa cultura e conte nossa história? Por que precisamos, ou desejamos, ficar parecidos com Los Angeles, ou Chicago, ou Boston, ou Tóquio, ou São Paulo, ou todas as outras, que por sua vez ficam cada vez mais parecidas com nosso lado plástico, sem gosto, ao invés de seguirmos o exemplo de Roma, Paris, Barcelona, Atenas, que são atuais sem se render à palidez?
A questão, enfim, transcende à estética, ao gosto pessoal, o maior perigo é terminarmos playmobil morando numa cidade feita de Lego.
 
Mercado Municipal de SP:
Um bom exemplo de serviço modernizado num espaço histórico preservado.