terça-feira, 28 de agosto de 2012

O vazio está cheio




Não é bloqueio, é falta do que falar.

No mundo atual pode parecer esquisito, mas ainda existe. Cercado de gente por todos os lados, notícias que chegam até nós por todos os meios, verborrágicos ansiosos por uma conversa no metrô, ainda há espaço para o vazio?

Podem me acusar de superficial. Todo dia alguém morre numa guerra, o que por si só renderia mil crônicas. Todo dia surge um novo sucesso da internet. Todo dia fotografam a Piovani no Leblon, todo dia ela bate num paparazzo pentelho. Afora o que está aí, já existia quinhentos anos antes de eu nascer e merece elogios, reflexões e análises em qualquer tempo e espaço.

Por exemplo, por conta de um trabalho, estou lendo Don Quixote. Nunca tinha lido. Uma amiga escritora disse que foi o primeiro romance moderno. É o livro perfeito e acho que ninguém deveria ter escrito outro romance depois, tem tudo lá. Mas escrevemos e ainda bem que vieram Ulysses, 1984, O Cortiço... Don Quixote dá uma excelente crônica, mas não é dele que quero falar.

Megadeth vai comemorar em São Paulo 20 anos do lançamento de Countdown to extinction, enquanto na última sexta-feira a Plebe Rude fez um belo show no Circo Voador. Música, seja de qualquer qualidade, sempre dá boa crônica. E daí?

Tem o mensalão e a disputa de egos de Ministros. Somos diariamente acordados com notícias tristes a respeito da política e, agora também, do Direito. Houve um tempo em minha vida em que o Direito representou esperança (de ganhar um bom salário), mas isso acabou antes mesmo de eu me formar. Dá pra falar sobre Brasília? Só se for sobre Lúcio Costa e Niemeyer (que adora desenhar curvas, mas projetou uma cidade sem esquinas), mas não quero.

Um dos meus prazeres recentes era sair de casa pela manhã para comprar pão, ou passear com o cachorro, e parar em frente a uma banca para ler as manchetes dos jornais que eu não compraria. Paixão que aumentou depois que entrou em circulação o jornal Meia Hora, com suas manchetes muitas vezes irônicas, grosseiras na maioria delas.

Fizeram tanto sucesso por aí, que não há um dia em que eu não ligue o computador e não depare com sua capa. Seja em rede social, seja por e-mail, sempre tem alguém que acorda antes de mim e envia o link do diário, acabando com meu barato de ler por mim mesmo o absurdo do dia pendurando na calçada. Consequência: não ligo mais o computador antes de ir à rua.

Tudo ganhou tanta importância, sentimos tanta necessidade de falar de qualquer coisa, antecipar qualquer coisa, dar cartaz a qualquer coisa, que tenho a impressão de que até aquele silêncio no meio de uma conversa não existe mais.



Não culpo a contemporaneidade, não culpo a imprensa ou as mídias, não culpo a superficialidade ou a falta de educação. Não culpo ninguém. As coisas são assim, mudam. O silêncio e a falta perderam valor por esses dias. Tudo tem de estar preenchido, apesar de haver muito no vazio.

terça-feira, 21 de agosto de 2012

Síndrome de caramujo


Usamos o carro somente quando viajamos, um hábito que faz bem ao bolso e mantém um bom nível de serenidade, já que o trânsito do Rio de Janeiro anda infernal. Usamos o carro com frequência, já que, pelo menos uma vez por mês, pegamos a estrada em busca de um lugar onde encontrar uma rede na varanda. Foi assim que, pela sétima vez, fomos ao Festival da Cachaça de Paraty.

Na primeira vez, no já longínquo ano de 2006, ficamos maravilhados. Parecia uma quermesse superlativa, com boas atrações musicais, regionalismo, originalidade, boa pinga, fora o prazer de passar uns dias numa das cidades mais bonitas do país.

Daquele tempo pra cá, muita coisa mudou. Desde o público (antes, casais mais velhos em busca de bucolismo. Hoje, a garotada da ‘pegação’) até a própria estrutura do evento.

Das lembranças que guardo da festa, o chão coberto por palha de cana e os eventos de música regional que aconteciam no palco secundário, são as melhores. Não existem mais.

Pensei muito no que teria levado os organizadores a mudar o perfil do Festival e concluí que a culpa é, também, dos forasteiros.

O barato de esticar as canelas numa rede não está entre as pretensões de quem não consegue se livrar da síndrome de caramujo. Doença que acomete essas pessoas que levam o notebook para a mesa de café da manhã de um hotel charmoso, porque precisam baixar as fotos que tiraram na noite anterior e carregar o Facebook.

Num exercício de ficção, tentei imaginar que legenda a mocinha colocou nas fotos. Não consegui, não é minha onda. Não conseguiria, naquele lugar, naquele momento, na companhia da minha mulher, escrever nada que alguém – além de nós dois – merecesse ler. Devo ser mal ficcionista, ou rabugento.

Mais tarde, escorregando entre as pedras do centro histórico, fui obrigado a desviar de dezenas de carros com os vidros pretos de onde saíam terríveis sinfonias no estilo funk/sertanejo/axé, até descobrir que os grupos de maracatu, choro e samba-de-roda locais, que por anos animaram os visitantes durante as tardes, foram deixados de lado.

Eu, que viajei para encontrar um lugar que fosse diferente do que é o meu cotidiano (forçado), não consegui me sentir a mais de dois quilômetros da Praça Varnhagen.

Ninguém estava (está) interessado em viver uma experiência diferente, talvez por isso achem sacal caminhar horas por uma trilha de Trindade e, ao final, sentar na beira da praia para ouvir o ‘reggae’ local.

Tudo tem motivação. Não sei a deles. No meu caso, viagens servem para conhecer e absorver novas culturas, aproveitar circunstâncias às quais só terei acesso naquele momento e/ou lugar. Não vejo graça em transformar cada lugar ao qual vou naquilo que sou. Não viajo com a casa nas costas. Do contrário, é melhor ficar na varanda da Tijuca, é menos caro e só divido a mesa do café com minha esposa (filho, cachorro, gatos...).

quarta-feira, 15 de agosto de 2012

O nariz

uma de minhas raras fotos de perfil



Os motivos pelos quais eu poderia odiar meu nariz não são poucos. Ele é grande e feio. Curvado, mais ou menos na metade do percurso entre o vinco das sobrancelhas e as narinas. Projetado por um osso (ou será cartilagem?) inconveniente que resolveu aparecer por ali quando eu tinha uns sete, oito anos.

Excluída a infelicidade estética, eu sofro de rinite alérgica. Portanto, em tempos muito secos, ou úmidos demais, além do tamanho que já tem, ele fica vermelho, e eu parecendo a rena trouxa do Papai Noel.

Outra das impertinências diz respeito ao início da minha juventude. Fui adolescente de temperamento difícil. Qualquer besta cinco centímetros mais alta e vinte quilos mais pesada conseguia facilmente me irritar, a ponto de arranjar uma briga e me fazer voltar para casa cuspindo marimbondos com o nariz partido.

Sem falar em outras inconveniências que vão desde apelidos à paranoia incompreendida de me recusar peremptoriamente a tirar fotografias de perfil.

E mesmo com tudo isso, ou apesar da real disposição genética de ser um velhinho com pelos saltando freneticamente das narinas, eu gosto do meu nariz. E vou te dizer por quê: De todos os sentidos, da visão à audição, passando pelo tato e pelo paladar, nenhum se compara ao olfato. É primordial, é ancestral. Se a capacidade racional nos diferencia, o olfato nos iguala a todos os outros seres. Em tempos pós-modernos de alta tecnologia, é pelo olfato que mais nos aproximamos do nosso cachorro e do que somos em essência.

Fica na lembrança, como nenhuma fotografia ou música, o cheiro de bloqueador solar que a mãe chafurda no nosso nariz antes de chegar à praia. Ou, melhor que qualquer toque em tecido fino ou pele suave é o cheiro do perfume que infestou o primeiro beijo. No que o cinema 3D supera o cheiro do quarto do sítio do avô perdido em alguma estrada da serra?

Nenhum prato do Cordon Bleu eleva mais o espírito que o cheiro do corredor de acesso às arquibancadas do Maracanã num dia de final de campeonato estadual. E é uma tarde de domingo ensolarado, é verão, e você chega abraçado à perna do seu pai, e aspira o suor e a cerveja que seu pai leva na mão, e o cheiro do gramado (verde, verde) recém-molhado, que sobe pela geral, cobre as cadeiras e arrebata as arquibancadas. O cheiro do cigarro do velho irritadiço que xinga o Nunes e depois levanta pra comemorar o gol do “maior centroavante que o Flamengo já teve”. O cheiro da pipoca doce misturado ao mofo da bandeira que ficou guardada tempo demais dentro do armário, a volta para casa no ônibus, o escapamento do ônibus e mil pessoas se espremendo no ônibus, cada uma delas com um cheiro diferente.

O olfato é a fotografia que não depende da fixação de imagens em uma película por obra da exposição de luminosidade intensa, mas apenas de sensíveis receptores, pequeninas células, impulsos elétricos involuntários, que enviam ao cérebro mais que uma imagem, um gosto, um toque, um som. Enviam histórias das quais somente lembramos quando essa fantástica máquina do tempo funciona e damos o primeiro passo na direção daquilo que fica realmente guardado, esquecido, abandonado, e ressurge violento como o cheiro de gasolina, e enjoa, emociona, irrita, agrada, leva a um canto que fica escuro na maior parte do tempo.

Daí que, se um dia você me ouvir ranzinza reclamar do meu nariz, tenha a certeza de que estou sendo mais tato que olfato. Ou as lembranças são ruins – que elas também existem.



* Crônica desenvolvida na excelente oficina de Arnaldo Bloch - Escrita como libertação (recomendo).

sexta-feira, 10 de agosto de 2012

A mão da vergonha: e se o seu filho fosse (for) gay?



Em casa temos o hábito de guardar o jornal por muito tempo. Passadas semanas, suas páginas viram banheiro de gato, embrulho de copos quebrados. Às vezes são relidas.

Foi assim, meio por acaso, que li matéria de Evandro Éboli publicada em O Globo de 21 de julho desse ano, que tratava de uma estatística triste. A manchete era clara: “Em 2011, 19 ataques homofóbicos por dia”.

Nunca fui bom em análise estatística e dificilmente consigo extrair de números algo mais que números. Dessa vez foi diferente. Além daquele explícito no caput da reportagem, haviam outros, tais como o número de agressores (2.275) é maior que o de agredidos (1.713), mais de 40% das agressões são injuriosas e por aí vai.

Como deixando o pior para o final, adiante encontrei o atilho que me trouxe a essas palavras: Em sua maioria (38,2%) os ataques são praticados por familiares, seguidos de ataques de vizinhos (35,8%).

Minha constatação óbvia era de que se tratava de coisa de pai e irmão machões, isso antes que chegasse a mais triste das estatísticas. No ambiente familiar as agressões são praticadas em sua maioria pelas mães.

Como dito, nunca fui muito bom em descobrir por trás de estatísticas algo além de algarismos, mas esses números não falam, eles xingam.

Por que exatamente as mães agridem mais filhos homossexuais que os pais, não sei dizer, mas tenho uma ideia. É o braço forte da vergonha, a decepção, medo de que o filho gay seja o reflexo de sua incompetência como gerente da família. A homossexualidade da prole um defeito, ela a culpada.

Na minha cabeça, as coisas pioram quando do outro lado vemos pais de agressores (sejam de gays, prostitutas, empregadas domésticas, índios, mendigos bêbados) defendo sua prole até a última gota de suor e o último centavo empenhado aos advogados. Invariavelmente dizem que seu filho não é bandido, que é tudo um mal entendido, que o rapazinho estuda e a prisão pode acabar com seu futuro.

Nesse quadro, alguma coisa está fora da ordem.

E pode ser diferente? Pode piorar. Acredito que continuando as coisas como estão, se as próprias mães agridem os filhos gays, se as próprias mães defendem os filhos agressores, em dez anos os 19 ataques homofóbicos diários no Brasil triplicarão, decuplicarão.

Enquanto escolas não discutirem abertamente a questão, enquanto as religiões não aceitarem as diferenças (céus, Deus sabe disso?!?), enquanto a sociedade não tratar com normalidade o que é normal, mães continuarão sentindo vergonha e agredindo aqueles a quem deveriam proteger, enquanto outras continuarão a dar desculpas esfarrapadas para proteger aqueles a quem deveriam punir, aqueles de quem deveriam sentir vergonha.

Na próxima e todas as vezes que lhe perguntarem: e seu filho fosse (for) gay? Responda (e deseje): que ele seja feliz, que seja honesto e que seja saudável, como qualquer outro filho. Até que a vergonha passe para o lado das pessoas que fazem esse tipo de pergunta. Para quem quer saber os números da vergonha ai vai o link: http://clippingmp.planejamento.gov.br/cadastros/noticias/2012/7/21/em-2011-19-ataques-homofobicos-por-dia/


quinta-feira, 2 de agosto de 2012

Olha a cabeleira...



O maior problema em deixar o cabelo crescer não está na sua cabeça, mas na dos outros. Não há um dia em que alguém não pergunte por que não corto o cabelo. Porque não quero, tem sido a resposta usual.
Minha mãe (sempre elas) chegou ao cúmulo de dizer que estou fazendo esforço para ficar feio, talvez querendo se eximir de responsabilidades genéticas. Uma tia ameaçou andar a postos com uma tesoura para arrancar alguns tufos na primeira oportunidade. Na pelada das quartas-feiras ganhei o apelido de Puyol, menos pela qualidade que pela aparência.
A verdade é que, depois de ‘velho’, decidi cumprir uma meta que aos quinze não tive coragem (saco) de cumprir: Cabelos abaixo dos ombros (cheguei a ter uma franja ridícula que cobria parte do meu rosto). Motivo? Nenhum relevante, mas o assunto tem sido pauta recorrente no meu dia-a-dia.
Encorajado (influenciado, talvez) pela esposa, desde dezembro passado corto o cabelo o mínimo possível – no máximo um centímetro – a cada três meses, sempre nos primeiros dias do quadrante crescente da lua. Meu cabeleireiro (sim, eu tenho um cabeleireiro de estimação) garantiu que essa história de cortar cabelo na fase certa é bobagem, o que vale mesmo é a competência de quem corta. E, de fato, o pelo vem crescendo assustadoramente. O que muito me agrada.
É um novo mundo habitado por cremes, escovas, xampus, óleos, secadores, do qual tinha conhecimento de ouvir dizer, quando muito, espiando a conversa da esposa com as amigas. Não imaginava o trabalho que dá tentar manter a ordem no telhado.
Pior, não imaginava que havia fases, mas elas existem.
Nesse momento vivo entre o meio curto e o meio. Alguma coisa sem definição que não se pode pentear, prender, ou esconder com o boné. Algo horrível para humanos comuns. Pior para quem tem o cabelo um tanto rebelde.
Daí que, nessa manhã, resolvi assistir às Olimpíadas. Minha modalidade favorita (nesses jogos) é o judô. E não é que dele pude extrair muitas soluções criativas para a rebeldia da cabeleira.
As moças do judô tem um problema sério na vida: Praticam uma atividade física altamente viril, enquanto buscam manter algum traço de feminilidade mesmo durante as lutas. Em sua maioria cabeludas, as judocas buscam muitos artifícios para que, entre um Yuko e um Ippon, não sofram aquela dorzinha típica do cabelo da nuca preso (putz, como dói). Juntando as duas necessidades (beleza e proteção) temos um festival de nós, laços, tranças, penteados de dar inveja a produtores de moda.
Tentei transportar alguns daqueles penteados para o meu rosto. No final cheguei a conclusão (para desespero da minha mãe) que prefiro parecer com o Puyol, pelo menos o apelido é menos degradante que o anterior: múmia.