quarta-feira, 13 de abril de 2016

Completamente apaixonado



A paixão é o problema. É fogo morro acima. Esqueça suas convicções, suas ideias predefinidas, suas orientações educacionais, se tiver de culpar alguém, culpe a paixão.

Ela te fez perder a cabeça e xingar o amigo de infância que votou no outro, fez rebater a ofensa com apelo mais gravoso. Ela fez os canalhas cuspirem na pessoa que não conheciam porque vestiam uma camisa diferente, porque torciam por um time diferente. Ela provocou esse furor que hoje transborda das casas e leva todo mundo para o bueiro.

Não é menor que a razão, nem pior. Não é essa a questão. Desmedida, a razão torna as coisas chatas, a paixão torna tudo cego. Desmedidas, as duas são quase sempre indesejáveis.

Em geral, a razão é freio e a paixão é acelerador. Sendo assim, culpe a paixão pelo acidente e se descobrir que estava sem freio, não culpe a si mesmo por deixar de verificar as pastilhas antes da viagem.

Culpe a paixão pela inconsequência do seu amor, pela amante, pelas suas parafilias, “é tudo paixão que virou doença”, grite ao ser preso com uma faca ensanguentada na mão.

Paixão morte. O marido policial descobriu que a mulher o traía com o capitão da corporação, cercou o carro que saía do motel. Trocaram tiros, balas cheias de paixão que acertaram seus corpos. Paixão rasgando a carne, rompendo vasos sanguíneos e perfurando órgãos vitais. Paixão que abre covas dia a dia. Que mata o coração do marido traído e alimenta o coração do poeta resignado.

Paixão vazio egoísta. O casamento acabou fazia anos, antes mesmo de começar. O homem amava a mulher, mas era apaixonado pelo trabalho. Culpe a paixão. Não foram as noites de serão, nem o silêncio recorrente na mesa de jantar. O sexo escasso, o desprezo crescente e a falta de atenção que, de tanta, chamou a atenção dos familiares. A culpa é da paixão que ele nutria desde a infância e que se tornou profissão, mas não menos paixão.

Paixão estupidez. A paixão que transformou a religião em algo mais importante que a fé, a doutrina mais importante que a ação. Culpe a paixão pelas pedras que atirou. As mãos do apaixonado que apedrejou a adúltera de Cristo e a suburbana macumbeira. Culpe a paixão com uma explicação bem arrazoada.

Sua cabeça perde o controle, tudo agora está à flor da pele. Anoesis. Puro estado de sensações e emoções, liberto da razão castradora você pode fazer tudo, a culpa não está em você.

Vá em busca de novos desafios, sem limites. Embrenhado na mata, perdido, siga em frente, viaje para longe e quando seus pés estiverem sangrando terá sido a paixão o impulso para o desatino.


Culpe a paixão até o fim - e mesmo que não haja um fim. Que a culpa dela é a desculpa que te resta, é a bengala que sobrou pra te ajudar a caminhar para trás.

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2016

Eu sou o pombo que caga na sua estátua

A polêmica foto de gosto duvidoso. Aliás, de mau gosto

A morte tem sido a maior aliada dos autores. Atualmente, todo escritor que morre tem recebido tratamento de lenda antes mesmo de pisar o inferno. O caso mais recente foi de Umberto Eco, após sua recente passagem, houve quem se descobrisse fã do escritor sem nunca ter sabido.

Nada contra homenagens póstumas a grandes vultos culturais. O que me incomoda é que de um tempo pra cá esses nomes tem se tornado mais importantes mortos, que vivos. Como se apenas após o óbito fossem dignos de admiração.

Deve ser algum fenômeno da internet que não sou capaz de compreender, ou analisar. Mas cinco anos atrás escrevi um conto que ironizava o assunto. Chama-se ‘Delírios de grandeza do escritor suicida’ e trata de um escritor medíocre que, cansado do anonimato, planeja um suicídio lírico, poético, a fim de alavancar a carreira.

O conto foi fulminado pela Marina Colasanti, que achou meio mórbido e disse que era tudo mentira. Tentei argumentar, mas não fui capaz de convencê-la de que aquela história era mais real do que podíamos julgar. Errei no suicídio, parece que saiu de moda entre os escritores.

A morte, porém, como escrito na primeira linha, tornou-se mesmo uma catapulta involuntária para a fama.

Perturbado por essa certeza e na tentativa de carimbar minhas figurinhas favoritas, após a morte de Eco, tratei de correr ao Facebook e proclamar meu amor aos meus dois autores favoritos, que já estão velhinhos (espero que vivam muitos anos). Uma ode cibernética, coisa dos nossos tempos: gravar uma poesia em forma de elogio na nuvem.

Desconfio, no entanto, que o maior elogio que se pode fazer a Eco, Clarice, Bowie, ou qualquer grande nome da arte que esteja vivo, ou morto, seja consumir sua obra.

Mais do que postar frases retiradas de livros, ou criar cartões com poemas desconexos de origem duvidosa, ou batizar ruas (cidades, curvas), ou levantar bustos e estátuas, manter viva a obra comprando seus livros, tocando sua música, reprisando seus vídeos, relançando seus discos é a forma mais bela de tributo.

Chegamos, então, à semana em que se espalhou feito praga a foto de uma moça de biquine quase sentada sobre os ombros da estátua de Carlos Drummond de Andrade, com a genitália (devidamente coberta) repousada sobre a nuca do poeta e na qual me tornei vítima de uma porrada em rede social.

Ao comentar na time line de um amigo que achava a foto engraçada, recebi um soco virtual em forma de “você achou engraçado porque também é um sem cultura também”. Quase fui à lona. No trajeto tive tempo de pensar em tudo o que escrevi até aqui e mais.

No Rio de Janeiro ouvimos falar na estátua do poeta ao menos duas vezes ao ano desde a sua inauguração: quando larápios roubam os aros dos óculos, ou exibidos picham o monumento. Guardamos essa estátua com um zelo que não consigo enxergar sobre a obra do autor. Não gosto de ver a cidade maltratada, mas esse texto não está preocupado com esse assunto (importante, sem dúvida).

Precisamos pensar sobre a reverência prestada aos objetos representativos. Túmulos que visitamos, bustos que levantamos. Eles têm sua importância, naturalmente. Mas não são essenciais. O essencial de Drummond está impresso e foi escrito por ele. O resto é enfeite, como o porta-retratos que não é a pessoa que amamos, mas está ali só pra lembrar que ela existiu (como se fosse necessário).

Talvez, se soubéssemos disso, teríamos mais interesse em conhecer a obra de nossos escritores (de preferência, em vida), muitos abandonados, desconhecidos; mais merecedores de respeito que meras estátuas, menos respeitados que a merda do pombo que suja diariamente o ombro do Drummond.


Comentários a mais:

1 -Drummond escreveu o seguinte poema sobre o corpo feminino:

No corpo feminino, esse retiro 
- a doce bunda - é ainda o que prefiro.
A ela, meu mais íntimo suspiro,
Pois tanto mais a apalpo quanto a miro.

Que tanto mais a quero, se me firo
Em unhas protestantes, a respiro
A brisa dos planetas, no seu giro
Lento, violento... Então, se ponho tiro

A mão em concha - a mão, sábio papiro,
Iluminando o gozo, qual lampiro.
Ou se, dessedentado, já me estiro,

Me penso, me restauro, me confiro,
O sentimento da morte ei que adquiro:
De rola, a bunda torna-se vampiro.

2 – De Umberto Eco, só li Confissões de um jovem escritor, não gostei muito. De vez em quando abro em uma página aleatória, folheio, bebo algum conselho que esqueço em seguida e só volto a reabrir o livro meses depois.

3 – A ideia da frase “A morte tem sido a maior aliada dos autores” já foi destrinchada por mim antes. Não por acaso está no conto Delírios de Grandeza do Escritor Suicída, escrito em 2011 e publicado em 2012 no blog Estronho e Esquésito, que pode ser lido aqui.