Eu e Badu em Iriri
A notícia de que meu pai estava
com câncer veio acompanhada de um bom prognóstico: o tratamento seria leve e a
possibilidade de cura chegava a 95%. Um ano e meio depois, recebi um telefonema
do meu irmão no meio da madrugada dizendo que meu pai não resistira a mais uma
sessão de quimioterapia e morrera em casa.
Estive com o velho um dia antes e
sabia que sua maior tristeza não vinha das dores que sentia, ou do sofrimento
que lhe provocavam atividades que antes fazia com desenvoltura. Sua maior dor
não vinha da humilhação que sofria cada vez que precisava de ajuda para ir ao
banheiro. Ele sabia que estava perdendo o que mais amava: a vida. Sua
incapacidade de manter-se vivo era o que lhe entristecia.
O apego do meu pai à vida era um
tanto exagerado – nem sei se era apego à vida, ou pavor da morte, apesar de sua
profunda religiosidade cristã – e talvez não seja uma boa referência, dado o
antagonismo acentuado em relação à ‘morte piedosa’. Mas com ele vivi minha
única experiência de sofrimento grave.
Todas as vezes em que saiu das
infindáveis sessões de quimioterapia, ele me telefonou. Todas as vezes em que
esteve internado, estive com ele. Muitas das vezes em que sentiu dor, estive ao
seu lado. Em nenhum momento ele sugeriu trocar o sofrimento pelo alívio do descanso
eterno.
Juntos de novo em Campos do Jordão
Três meses depois de perder meu
pai, recebo a notícia de que a Bélgica aprovou a eutanásia em crianças.
Não acho que qualquer pessoa que
não tenha passado pelo sofrimento extremo tenha a capacidade de opinar
adequadamente sobre a morte piedosa. Meu pai fez uma opção, minha opinião vem
de uma experiência deslocada (vivi com uma pessoa que suportou um sofrimento
acima de suas próprias forças e nunca externou a vontade de interromper a vida).
E é precisamente por achar que
somente quem vive o mal pode compreender sua extensão e determinar quando e
como ele deve ser interrompido, que a noticia me espantou.
Existe uma diferença
significativa entre o “me deixem morrer” e o “vamos desligar os aparelhos”, uma
diferença de origem da vontade. Enquanto na morte assistida o paciente clama
pelo direito de decidir quando e como morrer (direito natural e inafastável), há
permissões para eutanásia em que a decisão pode estar nas mãos de outras
pessoas.
Muitos foram os casos que
chegaram aos tribunais mundo a fora em que familiares pleiteavam o direito de
desligar aparelhos que mantinham vivas pessoas incapazes de se comunicar. Esses
casos forjaram leis, que evoluíram até os dias atuais. Casos em que a vontade
do próprio paciente (elemento essencial para morte assistida), não foi
manifestada. E nunca será.
Não poderemos mensurar, jamais,
em quantos desses casos estávamos diante de pessoas que, como meu pai,
prefeririam encarar a dor até o final, ou pessoas que optariam pelo desígnio
próprio de encerrar o quanto antes aquilo que se sabia não ter mais remédio.
Penúltimo aniversário que comemoramos juntos:nascemos os dois em 26 de julho.
O caso da lei que autoriza a
eutanásia em crianças belgas me leva até aí. Crianças não podem escolher a
escola que frequentarão, ao menos não costuma ser assim. Não escolhem o que
almoçarão. E essas são escolhas simples. Crianças não escolhem o remédio, ou o
tratamento ao qual serão submetidas (no caso de haver opção). Não escolhem o
médico que lhes assistirá, porque consideramos que não possuem experiência e
discernimento suficiente para optar pelo que lhes é mais adequado.
Da mesma forma, crianças não
saberão escolher entre enfrentar o sofrimento ou suplantá-lo, porque ainda não
são capazes de determinar o quanto podem suportar (a lei belga determina que
para a eutanásia ser autorizada a criança deverá ser capaz de discernir!!!).
A primeira
vista, a nova lei belga vem em socorro de pais e parentes, mais do que daqueles
que se ‘beneficiarão’ dela. A impressão que provoca em mim é a do alivio do
fardo do terceiro.
Volto a admitir que aqueles que
sofrem inconscientemente e não podem se comunicar – pacientes em coma há anos –
não sofrem menos, mas a impossibilidade de externarem a vontade deveria ser ao
menos considerada mais importante do que a vontade de quem acompanha, de fora,
sua dor muda.
Admito, mais. Que o sofrimento
emocional – esse que ataca parentes de pacientes - pode ser igual, ou mais
avassalador que o físico.
O suicídio é um exemplo de que há
ocasiões em que a dor emocional pode nos fazer incapazes de resistir ao
impulso de nos livrar do mal. Mas o suicídio continua sendo um tabu que nos faz
abrir sepulturas em locais isolados de cemitérios, apesar de ser uma das mais
claras demonstrações de vontade que o homem pode oferecer.
E a mesma sociedade que repudia o
suicida, cria leis que autorizam a morte de pessoas que são incapazes de
escolher o que lhes é mais caro. A mim não parece coerente.
Aquém de dogmas religiosos,
da influência das culturas, ou de uma ampla discussão sobre a dignidade da
pessoa, escolho enxergar o assunto a partir da última lição de meu pai: escolher
a vida.
As músicas do velho:
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