sexta-feira, 23 de agosto de 2013

Fantasmas reais

Até a morte, condição definitiva, aceita muitas possibilidades. Para o cético, uma súbita parede negra; para o crente, um caminho, outras vidas, o paraíso. Seja qual for sua praia, certo é que a velha senhora virá ao seu encontro de foice em punho e você já pensou nisso, porque seja como (ou para aonde) for, será sempre instante e violência.
Instante. Quem viveu a trágica experiência de assistir a uma morte conhece a estranha sensação de fim que permanece por um tempo rondando a cabeça. Não o seu próprio fim, mas a morte talvez seja a perfeita definição de encerramento (não pretendo perder tempo com filosofias religiosas nesse texto). O momento em que o que é deixa de ser. Instante e morte, melhores sinônimos. Vasculhe os dicionários, descubra opção mais adequada. Não há.
Ao passo que, noutro sentido, a morte é algo que se protrai eternamente (por ser definitiva), quem morreu estará morto até o fim. É, portanto, instante e eternidade.
Violência. Para o ficcionista, apesar de parecer simples, a morte é dolorosa. Mesmo diante da possibilidade de criar, recriar, matar, reviver, matar novamente. O autor que mata é um assassino que comete o crime com premeditação - ponderação, o que muitas vezes lhe provoca angústia.
Lygia Fagundes Telles declarou em recente entrevista ao caderno Prosa (O Globo) que conversa (ou já conversou) com fantasmas de personagens que ‘matou’ em seus romances, revelando a dor que o autor em geral sente ao cometer seus crimes.
Escrevi há pouco que o trabalho do escritor (seu texto) é a materialização do que acontece dentro dele, misturado às experiências que vivenciou (essa é minha ideia sincera a respeito do ofício). Quando mata, o autor é assassino porque todo homem é assassino em potencial. Quando mata, o autor revolve esse ponto dentro de si. Tanto quanto quando trai, quando rouba, quando beija, sempre revolvendo potencialidades que o tornam sensível (ou será que consegue tocá-las por ser sensível?).
Conhecendo um tanto desse processo, invertendo a ordem, ao sair da experiência de ficcionista para retornar à vida, resta assombro diante da realidade. Matei pessoas devoradas por gente, preguei homens em paredes para que sangrassem até a morte, explodi, afoguei, envenenei pessoas. Lembro de cada uma delas, do seu rosto, seus nomes. Conhecia o que pensavam ou sentiam, a culpa que me aperta é grande e real. Eu entendo Lygia F. Telles.
Não compreendo, contudo, filhas que partem os crânios dos pais e vão ao motel. Pais que descartam filhas como sacos de lixo pela janela do apartamento. Não entendo bandos que duelam até a morte em nome de uma paixão pueril como o futebol. A esposa que mata o marido rico. O marido que mata a mulher que optou pela separação. A indiferença ao caráter irredimível da morte, aquilo que não volta atrás. O erro incorrigível. (Quando não existe, ou não encontram explicação para a morte, ou apresentam-se múltiplas versões - todas absurdas - como no caso da família chacinada pelo filho recentemente em São Paulo, minha incompreensão avança ao limite).
Se a Lygia se ressente, o que sentem esses que matam na terra dos homens de verdade? Não é a mesma emoção. Se na ficção existe a possibilidade dos fantasmas retornarem e debatermos com eles motivos e expiarmos culpas, aos assassinos do mundo de cimento restará encarar os fantasmas reais, antes ou depois de toparem com a parede negra. O que dirão? Não consigo imaginar.
Trilha da coluna:

quarta-feira, 14 de agosto de 2013

Radicais livres

Foto de David Michael Kennedy
 
 
Ninguém quer estar em cima do muro, parece errado; feio mesmo. Dizem que preferem a sinceridade, “prefiro quem diz o que pensa”, “odeio falsidade”. Mas quem está preparado para a franqueza alheia? Poucos. Corrigindo, quem está pronto para admitir que outras pessoas tenham outras opiniões, concorde-se ou não com elas? E são coisas distintas, ouvir outra opinião e concordar com ela. Mas tendem a confundi-las.
Opinião livre é um direito, quase uma necessidade do homem que evolui. Nasce quase planta que emite sons, puro instinto. Cresce, ouvindo e buscando compreender o que existe ao redor. Estabelece-se quando aprende a depurar o que viu e a transformá-lo em algo novo: sua opinião. Aí, ingressa verdadeiramente na sociedade. Ter opinião, portanto, é o destino natural de todo homem que desenvolve a capacidade cognitiva.
Alguns optam por expressá-la (ainda que pela omissão), outros por reprimi-la (esses são os tais que ficam em cima do muro, deles não me ocuparei). Seja em que contexto for, a primeira opção me parece ser a mais correta, desde que o indivíduo identifique o momento e o modo adequados.
A opinião possui leis próprias. Quando passa à expressão livre, a primeira regra que se impõe é a reação. Sempre haverá entendimento oposto (ou diferente e não necessariamente oposto) vagando no ar. Aquele que não aceita a oposição se iguala àquele que não aceita opiniões, ambos os temíveis radicais.
A tenacidade é uma qualidade indiscutível, e manter a convicção amparado seja no conhecimento, seja no sentimento/ instinto, não pode ser considerado por si só intransigência. Nesse processo evolutivo, contudo,  o grande passo é aprender a conviver com a tese contrária (quando não, mudar de opinião).
Há, nesse ponto, um estado de liberdade o qual os radicais não alcançarão (enquanto forem radicais), que toda intolerância é uma grade que se põe entre os intolerantes e o resto. Confinados em sua cabeça (espaço pequeno), restritos ao alimento que encontrarem por ali, definharão sozinhos. A solidão é o que lhes aguarda e a pena merecida.
Não é raro, contudo, vê-los em bandos, especialmente em terrenos férteis como a política e a religião. Não se iluda, sua união é uma miragem. Seu objetivo não vai além da defesa do radicalismo em si. No final, terminarão invariavelmente separados pela própria incomplacência.
Por outro lado, a liberdade é coisa simples de ser alcançada. Um passo para o lado, pra fora das próprias convicções, é capaz de abrir a cela dos radicais, que nesse instante receberão outro nome, libertos por si mesmos.
E concorde você, ou não, isso é só a minha opinião.
 
Trilha sonora: Opinião - Zé Kéti.


sexta-feira, 2 de agosto de 2013

Sessão de terapia

ou brevíssima autoanálise com ajuda da literatura

Nunca entrei numa piscina Tone. E apesar de ter cruzado a infância morando em uma casa com piscina de medidas respeitáveis, essa é uma frustração com a qual terei de lidar para sempre.
Um dos lados bons da literatura, quando se é escritor (existe lado ruim?), é poder viver experiências improváveis, num tempo distante do seu, num mundo novo criado a partir das suas fantasias, reviver cenas e recriá-las. A literatura é, portanto, entre outras coisas um excelente remédio para aliviar decepções.
Os leitores tendem a acreditar que muito do que está nos livros é autobiográfico, uma ideia em parte certa, uma vez que o trabalho do autor parte do conjunto de experiências vividas ao longo da vida, somado a muitos outros fatores. No entanto, é difícil acreditar que Agatha Christie tenha cometido os mesmos crimes que suas personagens antes de escrever cada romance.
Muitas vezes funciona como uma sessão de terapia, ou melhor - se considerarmos que os autores em geral são mais sinceros que os analisados. Pode-se criticar a qualidade de um texto, apontando-lhe os defeitos técnicos, mas não acredito ser possível identificar a falta de sinceridade de um autor, já que o seu trabalho é a materialização do que acontece dentro de sua cabeça (ou outros lugares menos determináveis), algo que sai depois de maturado, destilado por muitos anos (ou alguns segundos), às vezes sem interferência consciente.
Nesse momento o autor descobre pedaços si mesmo.
Apesar de a literatura parecer uma arte mais cerebral que a música, nesse aspecto as duas se aproximam muito. E quem acredita que fazer música é simplesmente deitar com o violão numa rede e deixar as coisas fluírem está tão enganado quanto quem pensa que escrever se resume a conhecer regras de sintaxe e ortografia. Nascem da junção do conhecimento e da sensibilidade, que é precisamente o que as eleva.
Nesse momento o autor descobre frustrações, desejos, sentimentos, características que não imaginava ter, e é tarde demais para voltar atrás, ele está exposto. Resta mergulhar de cabeça na piscina Tone.