Até a morte, condição definitiva,
aceita muitas possibilidades. Para o cético, uma súbita parede negra; para o
crente, um caminho, outras vidas, o paraíso. Seja qual for sua praia, certo é
que a velha senhora virá ao seu encontro de foice em punho e você já pensou
nisso, porque seja como (ou para aonde) for, será sempre instante e violência.
Instante. Quem viveu a trágica
experiência de assistir a uma morte conhece a estranha sensação de fim que
permanece por um tempo rondando a cabeça. Não o seu próprio fim, mas a morte
talvez seja a perfeita definição de encerramento (não pretendo perder tempo com
filosofias religiosas nesse texto). O momento em que o que é deixa de ser. Instante e morte, melhores sinônimos. Vasculhe os dicionários, descubra
opção mais adequada. Não há.
Ao passo que, noutro sentido, a morte é
algo que se protrai eternamente (por ser definitiva), quem morreu estará morto
até o fim. É, portanto, instante e eternidade.
Violência. Para o ficcionista,
apesar de parecer simples, a morte é dolorosa. Mesmo diante da possibilidade de
criar, recriar, matar, reviver, matar novamente. O autor que mata é um
assassino que comete o crime com premeditação - ponderação, o que muitas vezes
lhe provoca angústia.
Lygia Fagundes Telles declarou em
recente entrevista ao caderno Prosa
(O Globo) que conversa (ou já conversou) com fantasmas de personagens que ‘matou’ em seus
romances, revelando a dor que o autor em geral sente ao cometer seus crimes.
Escrevi há pouco que o trabalho
do escritor (seu texto) é a materialização do que acontece dentro dele,
misturado às experiências que vivenciou (essa é minha ideia sincera a respeito
do ofício). Quando mata, o autor é assassino porque todo homem é assassino em
potencial. Quando mata, o autor revolve esse ponto dentro de si. Tanto quanto quando
trai, quando rouba, quando beija, sempre revolvendo potencialidades que o
tornam sensível (ou será que consegue tocá-las por ser sensível?).
Conhecendo um tanto desse
processo, invertendo a ordem, ao sair da experiência de ficcionista para
retornar à vida, resta assombro diante da realidade. Matei pessoas devoradas
por gente, preguei homens em paredes para que sangrassem até a morte, explodi,
afoguei, envenenei pessoas. Lembro de cada uma delas, do seu rosto, seus nomes.
Conhecia o que pensavam ou sentiam, a culpa que me aperta é grande e real. Eu
entendo Lygia F. Telles.
Não compreendo, contudo, filhas
que partem os crânios dos pais e vão ao motel. Pais que descartam filhas como
sacos de lixo pela janela do apartamento. Não entendo bandos que duelam até a
morte em nome de uma paixão pueril como o futebol. A esposa que mata o marido
rico. O marido que mata a mulher que optou pela separação. A indiferença ao
caráter irredimível da morte, aquilo que não volta atrás. O erro incorrigível.
(Quando não existe, ou não encontram explicação para a morte, ou apresentam-se
múltiplas versões - todas absurdas - como no caso da família chacinada pelo filho recentemente
em São Paulo, minha incompreensão avança ao limite).
Se a Lygia se ressente, o que
sentem esses que matam na terra dos homens de verdade? Não é a mesma emoção. Se
na ficção existe a possibilidade dos fantasmas retornarem e debatermos com eles
motivos e expiarmos culpas, aos assassinos do mundo de cimento restará encarar os fantasmas reais,
antes ou depois de toparem com a parede negra. O que dirão? Não consigo
imaginar.
Trilha da coluna: