Estava enfiado no melhor pijama, acompanhado de um copo de
Coca-Cola e um pedaço de pizza de frango com catupiry. Sentei no sofá e liguei
a televisão. Estava prestes a começar meu programa favorito, em que bandas de
música disputam um lugar ao sol. Tudo corria bem, até que um dos jurados
resolveu dizer que o melhor cantor de samba de todos os tempos se chama
Péricles.
Listas de melhores costumam encher revistas e jornais em
épocas específicas, como virada de ano, década, século. No caso de veículos
especializados, o prazo pode ser ainda menor, como a Billboard que mantém
constantemente atualizada uma lista com os maiorais da música mundial.
Mas nem a Billboard, mídia das mais valorosas da história da
música, tem a pretensão de indicar o melhor. Suas listas são baseadas nos mais
vendidos (ou executados), porque o melhor é pessoal.
Comecei a pensar.
O melhor beijo é o da minha esposa. O gosto, o tato, o jeito
de apertar meus lábios é o que faz querer beijá-la todos os dias. Por isso ela
se tornou minha esposa, tudo nela é melhor – é o que acho.
Meu guri é o mais genial, mais bonito, mais carinhoso filho
que existe. Gente fina até o talo. Melhor guitarrista com quem eu tive o prazer
de tocar.
O melhor time de futebol do mundo veste vermelho e preto e
mora em frente à Lagoa Rodrigo de Freitas, mas a metade da cidade discorda
disso (azar o deles). A única escola de samba que deveria existir tem plumas
verdes e rosas.
A melhor moqueca já feita pelo homem, na verdade era
preparada por uma mulher, minha avó Lekinha. Já, a melhor costela de boi você
vai encontrar no Escondidinho, no Centro do Rio de Janeiro, e o melhor galeto
bunda de fora fica no edifício Avenida Central.
Existe uma torta de bem casados em uma parada de estrada que
me fez acreditar no amor que Deus sente pelos homens e virou tradição de viagem
na minha família, ninguém nunca vai fazer uma torta melhor do que aquela.
Se a garganta secar e o papo pedir uma loura você pode optar
pelo chope sempre gelado do Sindicato, ou subir a Serra e procurar pela Vila de
Terê, ou a Ranz de Lumiar, melhor cerveja não há.
A praia da Barra é a mais gostosa do Rio de Janeiro e a Urca
é sem dúvida o melhor bairro da cidade, com honrosas menções a Copa e Tijuca.
A melhor banda do mundo é o Rush, integrada pelos melhores
instrumentistas vivos no mundo, que apresentaram o melhor show da história da
música contemporânea, em 2002, no Maracanã. Ninguém se iguala ao trio canadense
em execução e composição de rock. Mas o melhor vocal que já se ouviu por aí sai
da goela do Dio, que voz!
O que não se discute é que Dark side of the moon é o melhor
disco gravado na história da música, revoga-se qualquer opinião contrária. O
segundo melhor é The Heart of the Saturday Night, do Tom Waits.
Falam muito de Mozart e Bach, mas ninguém compôs tão bem
quanto Bethooven, o compositor da mais bela canção soprada pelo homem: Sinfonia
nº 9 em ré menor, Op. 125.
O Estrangeiro é o melhor livro que já foi escrito, mas os
melhores escritores vivos são todos meus amigos – ou quase todos, ou quase
amigos. Adoro os contos e os romances do Michel Laub (como eu gostaria de
escrever como ele), as mais belas crônicas são escritas pelo Pellanda, mas o
melhor e mais promissor escritor brasileiro é o Montes.
O melhor sambista de que se tem conhecimento foi o Angenor de
Oliveira, mas existiram o Nelson e o Zé Ketti. Tinha também o João, com quem
tive o prazer de passar uma madrugada conversando, em um bar com samba lá na
periferia de Niterói, poucos meses antes de sua morte. Existiram o portelense
Antônio e a Mineira Guerreira. Tinha o branquelo letrado da Vila, o boca torta
do Noel, e o malandro do Estácio, seu amigo Ismael. Tinha o Paulo, Tem Paulinho.
Tem Sargento, teve Elizeth, que minha avó Doxinha jura ser sua prima por vias
transversas. Teve Jamelão, hoje tem Beth. Até o Chico é bom de samba (apesar da
opinião dos outros). A melhor roda que frequentei era puxada pelo Memória do
Samba, grupo natimorto lá nos idos do ano 2000. O samba-enredo que me arranca
do chão disputou e ganhou o carnaval de 1969 – tanta gente competente que
produziu história.
Pensei em tudo isso quando ouvi o jurado do programa falar que
o Péricles é o melhor cantor de samba de todos os tempos. Pensei em tudo que
amo, que exalto como as melhores coisas do mundo. Tentei compreender por que a
moqueca da minha avó, Dio, Ranz, Camus, a boca da minha mulher. Por que foram
essas as coisas que me conquistaram e habitam meu pequeno altar íntimo de
adoração.
Amamos as coisas por algum motivo. Conhecer esse motivo,
porém, não é tão simples, nem necessário. A empatia está acima da razão, mais
ligada aos sentidos, mesmo aquelas aparentemente mais racionais, como o livro
favorito. O meu melhor pode ser horrível pra você, o que não piora o que sinto
por ele, ou melhora o que você sente.
Lembrei-me, ainda, que o mesmo sambista jurado que elevara
Péricles ao posto mais alto dos bambas havia afirmado, alguns anos atrás, ter
ele próprio mudado a história do mais importante gênero musical brasileiro.
Ora, é só a opinião dele, nada que deva me tirar do sério.
Não vou perder mais tempo com isso, concluí.
A pizza já estava fria e o refrigerante quente. Olhei pra
minha esposa, esparramada no outro sofá e resmunguei, “Calabresa é muito melhor
que frango com catupiry”.
Você decide quem é o melhor sambista de todos os tempos, pra você: